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ANGOLA, 38 ANOS DE GUERRA

Correio Braziliense / Caderno Especial / 1º de novembro de 1999 Por José Rezende Jr. Fotos: Claudio Versiani @claudio_versiani    Conteúdo Sensível


No buraco cavado debaixo da casa, mulheres e crianças se escondem das bombas que caem do céu. O homem faminto que lutava na superfície volta para o buraco, tira do colo da mulher o filho pequeno, morde e espreme o peito inchado de leite e dali arranca o primeiro alimento em muitos dias de guerra.


ANGOLA, 38 ANOS DE GUERRA

   38 anos de guerra não produziram apenas uma tragédia em Angola. Produziram milhões de tragédias: 2 milhões de mortos, 1,7 milhão de refugiados, milhares de órfãos, 200 pessoas mortas de fome por dia, 80 mil crianças, velhos, homens e mulheres mutilados pelas milhões de minas semeadas pelo país afora.


Em Angola, são milhões de tragédias, cada qual com um nome e uma história de final infeliz.


    A tragédia que se chama Margarida João, fecha os olhos e vê de novo o obus (artefato explosivo em forma de bala gigante, disparado de longa distância), caindo sobre o prédio onde morava em 1993, na cidade de Huambo, matando 35 vizinhos e amigos. Abre os olhos e vê a mãe, a filha Joelma, de 16 anos, um tio e dois sobrinhos assassinados a sangue frio pela guerrilha da Unita.


Dorme e sonha com a fuga em direção a Luanda, 20 dias a pé, bebendo água da chuva, meio morta de fome. Acorda espremida com outras 15 pessoas numa tenda de lona verde puída no campo de deslocados de guerra Comandante Gika, na capital do país, onde mora há seis anos e onde talvez viva até morrer.


Miquirina,  23 anos, mutilada por uma mina na guerra em Angola

    Miquirina Jambo, Félix e Maurício são os nomes de três outras tragédias. Em1993, Miquirina, que tinha 23 anos, foi com o primo Félix cortar lenha no mato. Félix, que ainda não tinha sete anos de idade, pisou numa mina. Desesperada, Miquirina correu para buscar ajuda. E pisou em outra mina. 


    Félix morreu perfurado pelos estilhaços. Miquirina perdeu a perna esquerda mas viveu para botar no mundo quatro filhos doentes. Um deles, Maurício, de três anos, está agora largado no chão do acampamento de deslocados de Huambo, capital da província de mesmo nome, onde a família vive desde que chegou em dezembro do ano passado, fugindo da guerra civil. 


    Maurício não sabe falar. Um dia, ardeu de febre, quase morreu de diarreia e perdeu também para sempre, como descreve a mãe, “a força de andar”. Maurício vê o mundo triste do acampamento com olhar distante, o rosto meio coberto de moscas. De vez em quando, tirando forças ninguém sabe de onde, ergue a mãozinha muito magra e espanta as moscas. Mas elas sempre voltam.


    Quando nasceu, Maurício não tinha esperanças de viver mais que 42 anos: é essa a expectativa de vida em Angola, a quinta mais baixa do mundo. Com o passar do tempo, diminuem as chances de envelhecer. Doente e desnutrido, Maurício corre o risco de engordar as estatísticas de mortalidade infantil, uma das mais altas do planeta. Nada menos que um quarto das crianças morre antes de completar cinco anos de vida. De sarampo, pólio, meningite, malária, diarreia, fome.


   Maurício tem a pele meio devorada pela sarna. Não é o único. Por falta de sabão para lavar o corpo e a única roupa do corpo, segue a sarna a comer apele de boa parte dos 22 mil deslocados de guerra desse acampamento conhecido como Coalfa, porque está instalado nos galpões varados de tiros de fuzil da antiga fábrica homônima. 


    Por ironia do destino ­ – como se estivesse escrito em algum livro santo que o destino da Angola é morrer em guerra ­– a Coalfa fabricava sabão.


    Em Kuito, capital da província de Bié, que já foi uma cidade florida e hoje tem mortos da guerra plantados nos jardins e quintais das casas, cada rosto que espia por trás de paredes e muros destruídos pela fuzilaria e pelos obuses conta uma tragédia, pelo menos uma. 


    Mas Manuela Marinho, sozinha, carrega oito tragédias: o marido Francisco e os sete filhos (Solange, 16 anos; os gêmeos Maximiano e Helder, 14; Letícia, 11; as gêmeas Ana e Joana, 9; e a caçula Rossana, 7), mortos por um obus quando tomavam café da manhã e enterrados numa única cova, neste país de cruzes em vez de flores.



ANGOLA, 38 ANOS DE GUERRA

Pobre país rico


    Manuela levou para Luanda a memória de suas oito tragédias. Muitos outros angolanos fizeram o mesmo. E foi assim que a capital do país, onde caberiam 600 mil habitantes, abriga de qualquer jeito 4 milhões de pessoas tentando sobreviver a qualquer custo, muitas no escuro, a maioria sem água, quase todos sem esgoto.


    E é assim que entre tantas tragédias com nome próprio, há uma que se chama Angola. Um país que é rico em diamantes, mas antes não fosse: graças à exploração de jazidas no território ocupado, a guerrilha da Unita chegou a faturar US$ 400 milhões por ano, o suficiente para montar uma máquina de matar feita de tanques, artilharia antiaérea e canhões que disparam até 40 projéteis ao mesmo tempo, a uma distância de 25 km do alvo.


    Um país que é rico em petróleo, mas a maioria do povo não se beneficia disso. E seguem os pobres comprando garrafinhas de petróleo iluminante que acendem à noite para compensar a luz elétrica ausente da maioria dos musseks (versão angolana das favelas brasileiras), que se proliferam pela cidade, impulsionados pela guerra e a miséria.


    A riqueza do país exportador de petróleo não impede que um botijão de gás chegue a custar na candonga (mercado paralelo, que é a única chance de sobrevivência para boa parte dos angolanos), o equivalente a U$ 15 em Luanda, e nada menos que US$ 50 em Huambo. 


    Por isso, os deslocados de guerra e os pobres em geral derrubam as árvores, que em Angola, no lugar de flores, frutos e beleza, passam a produzir apenas lenha. Cada vez é preciso andar mais longe, 30 km até, em busca de uma árvore para derrubar. Cada vez há menos árvores em Angola. E menos vida.


    A tragédia que se chama Angola amarga duas grandes traições da História. Aprimeira em 1975, quando conquistou a Independência depois de 14 anos deguerra contra o colonizador português, mas não teve tempo de comemorar: MPLA, Unita e FNLA, os três grupos guerrilheiros que brigavam pela libertação, continuaram a brigar entre si, com mais força do que nunca. A FNLA abandonou aluta, deixando o MPLA, no poder, e a Unita, na oposição, mergulhados na guerra civil que já dura 24 anos.


    Em 1992, a História traiu Angola pela segunda vez, na forma de um acordo de paz entre o MPLA e a Unita, que levou à realização das primeiras eleições do país. A euforia cívica virou pesadelo quando a Unita não aceitou a derrota nas urnas e lançou o país numa guerra ainda mais sangrenta.


    Apesar de tudo, as crianças de Angola insistem em sorrir. Ainda que com os dentes de leite estragados e os cantos dos lábios meio comidos pela sarna. No acampamento de Viana, perto de Angola, meninos e meninas cantam, em português:


Se eu pudesse voava

ao encontro da paz 

Abandonava essa guerra

ficava do lado da paz


    No acampamento da Coalfa, em Huambo, o professor Fernando Jojolo, que fugiu da aldeia de Sambo em 23 de fevereiro quando a Unita chegou atirando, dá aula sim improvisadas para 120 alunos. Por falta de material escolar, o mestre esquartejou um livro em inglês, com gravuras, e distribuiu uma página para cada aluno. Por uma infeliz coincidência, trata-se de um livro de receitas culinárias, com pratos de nomes esquisitos de países mais prósperos. Famintas, 120 crianças devoram páginas recheadas de brownies (United States), surprise akes (England), tuna fishpies (France),  mushroom omelettes (Poland) e  até emincé de porc (Brazil!!!), que jamais comerão um dia.


    Apesar de tudo, sai o professor Jojolo correndo pelo pátio da velha fábrica de sabão, dançando, batendo palmas e cantando em dialeto, seguido de perto por um coral de 120 pequenas tragédias dançarinas: 


Á papá okasumwe 

olohali vipongoloka

 

Que significa: 


Ah papai, não fique triste

esse sofrimento passa


Só não se sabe quando.




Mutilados (uma mina para cada angolano)

angolano mutilado pela guerra civil

    Uma das pernas das calças dos homens pende solta no espaço, sem serventia, enrolada de qualquer jeito ou dobrada com zelo e espetada por alfinetes. Das barras dos vestidos das mulheres desce uma única perna; às vezes, as saias mais curtas das moças deixam entrever uma coxa que termina de repente, inacabada, estraçalhada que foi por uma mina.


    Eles estão em toda parte. Incompletos. São 80 mil mutilados: homens, mulheres, velhos e crianças, arrastando muletas e o que restou de suas pernas pelas cidades, aldeias e campos de refugiados de um dos países mais minados do mundo.


    Angola tem 11 milhões de habitantes. Teria, segundo cálculos pessimistas, 11milhões de minas semeadas ao longo de quatro décadas de guerra (embora o governo admita a existência de, no máximo, 8 milhões). Logo, haveria uma minaà espera de cada angolano. 


    Conceição Arbana encontrou a sua numa manhã de 1996, quando colhia mandioca na província de Kuanza-Norte. Tinha 16 anos e adorava dançar kizomba, que está para os angolanos como a salsa para os cubanos. Chorou muito quando acordou no hospital sem a perna esquerda. Internada no centro de reabilitação que o governo mantém na cidade de Viana, prepara-se para receber uma prótese enquanto aprende corte e costura. Mas não vai mais dançar. E desistiu de namorar.


    Francisco Kaquarta, que era cabo do exército e jogava futebol, perdeu as duas pernas, o braço direito e a visão do olho esquerdo quando a mina que esperava por ele explodiu na manhã de 17 de fevereiro de 1994, na província de Benguela. Tinha 24 anos. Por azar, acordou antes que os médicos amputassem o que restava das duas pernas. 


    “Eu vi os ossos, os tecidos soltos, as veias penduradas...”, lembra.

    Francisco, ex-militar, é minoria: 70% dos mutilados são civis, sobretudo camponeses. Gente que não tem nada a ver com a guerra, a não ser o infortúniode viver num país que não sabe o que é viver em paz. E que escolheu uma dasformas mais cruéis de fazer a guerra: essa que arrebenta braços e pernas deseres humanos e que, na ausência de ­um hospital por perto, deixa eles sangrarem até a morte.


    Somente este ano (1999), de janeiro a setembro, foram 350 acidentes com minas em Angola. Há pelo menos um por dia, às vezes três. O lavrador Antônio Aspirante,47 anos, da província de Malanje, pisou numa mina quando fugia de um ataque da Unita à sua aldeia. Não reclama. “Ainda sobrou uma perna. Se a Unita me pegasse, eu estava com as duas, mas morto”.


    Domingos Ernesto, 47 anos, cinco filhos, viu o sonho da casa própria virar pesadelo quando apanhava pedras para o alicerce do lar em construção, perto do aeroporto de Kuito, e pisou na mina que lhe arrancou a perna esquerda. Joaquim Kassango, 45 anos, seis filhos, perdeu uma das pernas quando foi ao mato catar lenha; Rosalina Kassova, 18 anos, quando ia na roça “apanhar de comer”.


    Nati Esperança, 17 anos, teve mais sorte: escapou inteira, apenas com uma perna e um braço quebrados, quando o caminhão no qual pegava carona comprar feijão em Caxingue e revender em Kuito, detonou uma mina enterrada na estrada. O caminhão voou em chamas. Havia 28 pessoas a bordo, e 13 morreram na hora.


    É uma questão de sorte ou azar. Você pode envelhecer e morrer em Angola sem jamais pisar numa mina. Mas pode também pisar, com a ponta do pé ou com o calcanhar. No primeiro caso, os médicos amputarão apenas da canela para baixo; no segundo, só restará intacta a parte superior da perna, do joelho para cima. 


    Mas você pode também tropeçar no arame invisível que detonará a temida POMZ-2. Fabricada pela finada União Soviética, a POMZ-2 fica espetada na superfície, em vez de enterrada como as outras minas. Espalha estilhaços a 200 metros de distância, ferindo e matando muita gente ao mesmo tempo.


    No Hospital Provincial de Kuito, Eugenia Segunda, 33 anos, se recupera de um acidente com a POMZ-2. No dia 10 de agosto deste ano, o grupo de oito pessoas (sete mulheres e um bebê), ia à lavra buscar comida. Dona Laurinda, a primeira da fila, acionou a mina, espalhando os estilhaços. E morreu. 


Eugenia, que estava por último, apenas feriu um braço e uma perna. Mas perdeu nesse acidente cinco tias e o filho Elias, de dois meses, que carregava nas costas, atado a um pano colorido como fazem as mulheres angolanas. Outra filha de Eugenia, Augusta, geme de dor na cama ao lado. Augusta só viveu 14 anos. E já não tem uma das pernas.



Mutilados (na guerra de Angola, é mais barato morrer)


    Não há mocinhos nessa guerra de mutilações sem fim. A Unita planta minas, o governo semeia minas, Angola colhe mortos e mutilados. A partir de 1961, também espalharam minas o governo colonial português e os três grupos guerrilheiros que lutavam pela Independência (MPLA, Unita e FNLA). 


    Independência conquistada, o MPLA, a Unita, a FNLA continuaram a minar Angola. E mais os cubanos que apoiavam o MPLA, os sul-africanos e os marroquinos que apoiavam a Unita, os zairenses que apoiavam a FNLA. Só as tropas sul-africanas dos tempos do apartheid, estima o governo angolano, deixaram 2 milhões de minas como lembrança das várias tentativas de invadir o país.


    Em 1992, a partir do acordo de paz com a Unita que levaria às primeiras eleições da história de Angola, o governo criou o Instituto Nacional de Remoção de Obstáculos e Engenhos Explosivos (Inaroee), e iniciou o difícil trabalho de desminagem. 


     Naquele ano, o Inaroee removeu 31.746 minas antipessoais e 2.155antitanques, fabricadas por 25 países: Estados Unidos, França, Inglaterra, Áustria, Espanha, Itália, Portugal, União Soviética e África do Sul, entre outros cúmplices da barbárie.


   Mas a Unita perdeu a eleição e rasgou o acordo de paz. Acabou o trabalho de desminar, recomeçou o de minar. Em 1996, o Inaroee voltou ao trabalho. Mesmo com o auxílio de nove ONGs do ramo, só conseguiu remover pouco mais que 14 mil minas em três anos. Se mantido esse ritmo de remoção de 4.700 por ano, e existindo, como contabiliza o governo, 8 milhões de minas enterradas pelo país afora, serão necessários 1.700 anos para que se possa caminhar em paz em Angola. Isso se os dois lados da guerra parem de plantar as sementes de mutilação e morte.


    O problema é que uma mina básica, possante o suficiente para arrebentar uma perna humana, custa apenas US$ 3 no mercado internacional de armamentos, o preço de uma coca-cola e um hot-dog. E a remoção de uma única mina custa nada menos que US$ 2 mil. Por esse cálculo, seria preciso investir US$ 16 bilhões para livrar Angola do flagelo das minas.




desarmadores de minas em Angola

     Mas dos US$ 1,5 milhões de orçamento que pretendia receber este ano, inclusive para a compra de duas máquinas de desminagem mecanizada, o Inaroee recebeu... zero dólares. O órgão, que deveria ter pelo menos 1.300 sapadores (especialistas em explosivos), tem apenas 400. Um deles se chama Manoel José Paciência e trabalha na desminagem da província de Bié.


    Paciência contabiliza três mortes na família por acidente com mina: perdeu opai, em 1987, um irmão de 22 anos, em 1997, e uma irmã de 14, em 1998. Apesar do histórico familiar desfavorável, arrisca a vida todos os dias em troca de um salário de 160 milhões de kwanzas (pouco mais do que US$ 30. Detalhe: Paciência, como seus colegas, não recebe há quatro meses. Mesmo assim, continua desmontando minas e fincando estacas com o desenho de uma caveira e o aviso “Perigos, minas” – que por falta de gás a população pobre arranca para servir como lenha).


    O diretor-geral do Inaroee é o general Helder Cruz. Veterano de guerra, ex-chefe de engenharia do exército angolano, o homem que hoje manda tirar minas é o mesmo que no passado mandava colocar minas para deter a Unita. “Nós estamos numa guerra, temos que usar todos os meios para defender nossos objetivos estratégicos”, justifica.


    É o general quem explica a lógica que se esconde por trás do irracional. “Amina não foi feita para matar. Na batalha, um soldado ferido por uma mina precisa de dois outros soldados para removê-lo, sangue para transfusão, enfermeiros, médicos para amputar-lhe a perna etc etc. Já um soldado morto custa bem menos: um saco de plástico preto e uma etiqueta.”



Kuito, agosto de 1993.

Uma tragédia em dois tempos


Kuito, agosto de 1993.

  O dia insiste em nascer na cidade que agoniza ferida pelas bombas e a fuzilaria. Mas ainda é noite no buraco cavado embaixo da casa, no fundo do qual 16 pessoas, ­ a maioria mulheres e crianças, se espremem na tentativa de sobreviver aos obuses que há cinco meses cruzam 30 km de céu num assovio de morte, antes de desabar sobre telhados e gente com um estrondo de fim de mundo. 


    Exausto e faminto, o homem que passou o dia, a noite e a madrugada na superfície, disparando tiros com o fuzil soviético AK-47, desce de volta para o buraco. O homem não diz uma palavra à mulher: apenas tira do colo dela o filho pequeno, morde e espreme o peito inchado de leite e dali arranca a primeira refeição em muitos dias de guerra.


    A poucos metros de distância, na quase escuridão do improvisado abrigo subterrâneo, Maria Manuela da Costa Marinho, 31 anos, abre os olhos e vê o homem que mata a fome no peito da mulher que lhe pariu os filhos. Manuela não se espanta com a cena. Manuela não se espanta com coisa alguma ­desde aquela manhã, não faz muito tempo, em que viu desaparecer em um segundo a família que levou quase duas décadas para construir.


    Eram 7h30 do dia 17 de abril de 1993. Três meses antes, numa madrugada chuvosa de janeiro, a cidade acordou mais cedo com os obuses disparados pela Unita. Foram 12 dias de luta, até que o pequeno destacamento do MPLA, ajudado pela população civil, conseguisse rechaçar o inimigo. 


    Na madrugada de 16 de março, a Unita voltou mais forte. Os primeiros obuses caíram na periferia de Kuito, na direção do aeroporto. Com o passar dos dias e semanas, as bombas foram apertando o cerco, mas Manuela, funcionária do MPLA, e o marido, o caminhoneiro Francisco, continuavam a acreditar que não era hora ainda de se mudar com a família para um abrigo debaixo da terra.


    E é assim que na manhã de 17 de abril de 1993, Manuela, o marido e os sete filhos estão sentados à mesa do mata-bicho (o café da manhã angolano). Manuela, que é viciada em café, se levanta e vai até a cozinha apanhar mais um bule. No meio do caminho de volta, ouve o estrondo, vê o fogo, sente as telhas e os tijolos desabando. 


    O obus já matou seu marido e os sete filhos, mas ela só vai saber daqui a três meses, no dia que sair do hospital onde lhe abrirão a barriga para arrancar os estilhaços da bomba e lhe arrancarão também o útero. Manuela, que perdeu sete filhos, não poderá gerar mais nenhum.


    Manuela deixa o hospital e volta para casa. Mas já não há casa. Alguém lhe diz que os que moravam por ali estão escondidos no subsolo de um hotel. Lá, ela encontra uma amiga, Enda, que pega sua mão e a guia em silêncio até o quintal do hotel, onde há uma cruz de madeira com oito nomes escritos.


    Manuela lê um por um os oito nomes, o do marido e os dos sete filhos. Lê e relê até ter certeza de que está sozinha num mundo à beira do fim do mundo. Refugia-se, então, no buraco sob a casa de uma família conhecida, no fundo do qual, numa manhã escura, acordará sem se espantar com mais nada. Nem com o homem que suga do peito da mulher a força necessária para viver e seguir matando.

 


    

Kuito, outubro de 1999. 


praça central cujo nome homenageia a Independência de Angola

Os nove meses de cerco de 1993 se foram há muito. Mas o som e a fúria da guerra ainda hoje ecoam nas fachadas varadas de tiros dos prédios, nas paredes e telhados arrancados das casas, nas cruzes espetadas nos amontoados de terra arrasada que um dia foram jardins floridos.


    Na praça central cujo nome homenageia a Independência de Angola, o prédio outrora cor-de-rosa da Assembleia tenta se manter de pé, as ruínas protegidas por um portão de ferro enferrujado onde se vê a caveira de ossos cruzados e o aviso: “Perigo, minas”. 


    À esquerda das ruínas da Assembleia, o que sobrou do majestoso edifício-sede do Banco Nacional do Kuito, com restos de azulejos azuis portugueses na fachada em pedaços, vivem quatro ou cinco famílias famintas de deslocados de guerra. Na Escola Técnica Provincial de Saúde, futuros enfermeiros estudam sentados em tijolos e blocos de cimento, num sobrado verde desbotado que é quase um buraco só de tanto obus e ninguém entende como não caiu até hoje.


    Deslocados de guerra ­desta atual fase da guerra, que começou em dezembro do ano passado,­ arrastam-se pelas ruas imundas. Não há luz, nem água. Um engraxate sem pernas lustra o sapato encaixado na extremidade da perna postiça de um freguês que também pisou numa mina.


    Na Avenida Principal, o edifício Gabi conta, o mais alto da cidade, com seis andares, mantém-se de pé como símbolo vivo de resistência. É o avesso de um cartão-postal: eterniza o horror em vez do belo. Não fossem as roupas pobres penduradas nos varais e um ou outro morador que lá do alto lança o olhar perdido para a rua, ninguém imaginaria que há vida entre os escombros desse prédio que seis anos atrás foi o alvo preferencial dos obuses.


    Acima de tudo, os nove meses do cerco de 1993 estão preservados nas imagens impressas para sempre na retina dos sobreviventes. “Aqui, ficávamos nós, a atirar. Do lado de lá da rua, ficava a Unita, a atirar”, conta o professor Angélico Kamonakongo, debruçado no que um dia foi a varanda do apartamento onde ainda mora, no terceiro andar do edifício Gabi conta.


    Na época da guerra, a Avenida Principal dividia a cidade em duas. Do lado esquerdo, a Unita. Do lado direito, o MPLA e a população civil, que defendia Kuito com os fuzis distribuídos pelo governo. Os obuses, disparados a 30 km de distância, desequilibravam a guerra a favor da Unita. “Teve um que caiu no segundo andar e matou 32 pessoas de uma vez”, lembra Angélico.


    Mas a fome e a guerra eram flagelos maiores que as bombas. As estradas estavam interditadas, os aeroportos fechados. De vez em quando, um avião decolava de Luanda, fugia da artilharia antiaérea da Unita e lançava mantimentos de paraquedas, ­ que muitas vezes caíam na metade da cidade controlada pelo inimigo.


    Era preciso percorrer uma distância mortal no meio da rua, equilibrando um balde na cabeça, fugindo dos franco-atiradores, para chegar até a água. Um dia, Ester, irmã de Angélico, conseguiu furar o cerco na ida. Chegou a encher o balde, mas a água derramou até a última gota no instante em que a bala de fuzil atravessou a cabeça de Ester.


    A família organizou um grupo para sair à rua atirando e resgatar o corpo.

Ester foi enterrada no quintal de casa, num caixão feito com a madeira da mesa na qual durante os tempos da provisória paz angolana ela fazia as refeições com os cinco filhos. Não havia tempo para velórios. “Não havia tempo para chorar”, lembra o irmão.


    Ester foi uma honrosa exceção. Muitos corpos passaram os meses estendidos nas ruas, até que deles nenhuma carne mais restasse. “Ficavam lá, a apodrecer. De vez em quando, passava um cachorro magro com uma mão, um crânio, uma costela de gente na boca. É que eles, os animais, também sentem fome”, absolve o funcionário público Antônio Balbino.


    Manuela, a das oito tragédias, hoje trabalha como copeira da construtora brasileira Odebrecht, em Luanda. Chegou a passar 12 dias sem comer, alimentando-se apenas de água e sal. Quando a fome se tornava insuportável, era hora de organizar grupos de 80 homens e mulheres, os mais corajosos, que caminhavam sempre à noite em busca de lavouras abandonadas, muitas vezes a 100 km de distância.


    “A gente ia sem saber se voltava. Muitos morriam de fome no caminho, outros pisavam em minas e ficavam lá, com as pernas arrebentadas, a sangrar até morrer. E havia sempre os ataques da Unita”, lembra Manuela, que sobreviveu à fome, à guerra e à dor e hoje tenta reconstruir a vida. 


    “Já tenho um colchão, uma mesa e um fogão”, contabiliza a mulher que um dia teve marido e sete filhos, que a guerra converteu em oito tragédias.



Cronologia

(do fim da África à guerra sem fim)


1482 ­ O navegante português Diogo Cão, que buscava contornar o continente africano para chegar às Índias, desembarca em Angola e proclama ter atingido o ponto extremo da África. Recebido como herói em Portugal, cai em desgraça quando o engano é descoberto.


1576 ­ Fundação de Luanda, base para o tráfico de escravos que abastece principalmente o Brasil (Cerca de 3 milhões de angolanos foram enviados para opara o Brasil entre os séculos XVI e XIX).


1641 ­ A colonização portuguesa é bruscamente interrompida quando os holandeses invadem Angola e assumem o controle do tráfico de escravos.


1648 ­ Os portugueses expulsam os holandeses e retomam a colonização de Angola.


1961 ­ Começa a luta armada pela Independência, a partir do ataque frustrado do Movimento Popular para Libertação de Angola (MPLA), de orientação marxista, a três prisões de Luanda, na tentativa de libertar líderes nacionalistas.


1962 ­ Diferenças culturais e políticas dividem o movimento pela Independência. Rebeldes do Norte formam a Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA), anticomunista.


1966 ­ Nasce a União Nacional para Independência Total de Angola (Unita), formada por rebeldes nacionalistas do Sul. A princípio maoísta (o líder, Jonas Savimbi, foi treinado na China), a Unita torna-se anticomunista e recebe apoio do regime sul-africano do apartheid.


1974 ­ Em Portugal, a Revolução dos Cravos derruba a ditadura que governava o país desde os anos 20.


1975 ­ Portugal se rende à Independência a Angola. Pelo acordo entre as partes, o poder seria dividido entre os três grupos guerrilheiros, mas a guerra civil explode nesse mesmo ano.


1976 ­ O MPLA, que tinha o apoio de Cuba e União Soviética, derrota seus inimigos. O poeta e médico Agostinho Neto é proclamado presidente da socialista República Popular de Angola. O Brasil é o primeiro país a reconhecer o novo estado independente.


1979 ­ Com a morte de Agostinho Neto, José Eduardo dos Santos é proclamado presidente. A FNLA se dissolve, mas a Unita continua a guerrilha, agora com apoio também dos Estados Unidos, além da África do Sul.


1990 ­ Numa tentativa de aproximação com os Estados Unidos e diante das mudanças internacionais no mundo socialista, o MPLA decide abandonar o marxismo.


1991 ­ O MPLA e a Unita firmam acordo de paz em Bicesse (Portugal) e convoca mas primeiras eleições da história do país.


1992 ­ O MPLA vence as eleições. José Eduardo dos Santos é confirmado presidente pelas urnas, mas Jonas Savimbi, líder e candidato da Unita, não aceita a derrota e recomeça a guerra civil que devasta o país. A Unita tenta tomar Luanda, mas é rechaçada depois de três dias de combates sangrentos.


1993 ­ A Unita toma cidades importantes ,como as capitais Huambo e Kuito, na fase mais violenta da guerra.


1994 ­ MPLA e Unita assinam novo acordo de paz, em Lusaka (Zambia), que determina a desmobilização das duas tropas, a formação de um governo de união nacional e a integração da Unita a um exército nacional unificado. O cumprimento do acordo passa a ser monitorado por 7 mil soldados da ONU.


1997 ­ O governo de união nacional toma posse, com a participação de vários ministros e vice-ministros da Unita, mas Savimbi, que deveria assumir a Vice-Presidência de Angola, permanece com seus homens no interior e se recusa a entregar as jazidas de diamante controladas por ele.


1998 ­ Massacres de civis em aldeias no Norte, atribuídos aos comandados de Jonas Savimbi, reiniciam conflitos entre o governo e a Unita. Em dezembro, começa a atual fase da guerra civil.




Luanda Angola

Luanda (a capital do caos)


    Luanda deve ter sido bonita. Há muito não é. O sofrimento fez de Luanda uma cidade feia.


   Há lixo nas ruas esburacadas e boiando nos esgotos a céu aberto, carcaças de automóveis envelhecendo ao sol, muros onde se lê apelos inúteis, do tipo "Proibido mijar" e "Proibido deitar lixo". Um aviso proclama: "Nós queremos a paz em Angola", enquanto outro incentiva: "Força Angola, tudo passa". Mas não passa. 


    Nas esquinas, mutilados vestindo farda do exército pedem esmola; crianças pedem comida.


    E gente. Gente que não acaba mais, milhões de pessoas em constante movimento, batalhando a água de cada dia, vendendo pão, telefone sem fio, papel higiênico, peixinho de aquário desbotado, tábua de passar roupa, jogo de faca, perfume barato, calça jeans, talco, bloco de cimento, tudo que possa virar dinheiro e, portanto, comida. Não há tempo de pensar em futuro ­ a menos que futuro seja o outro nome do prazo fatal de 24 horas que o angolano tem para encontrar comida.


    A não ser pelos panos estampados que as mulheres enrolam no corpo, Luanda é uma cidade descolorida. A palavra quer dizer "terra vermelha", mas os musseks, as favelas que dominam a paisagem da capital, são feitos de barracos cinzentos. As casas de Luanda há anos desconhecem tinta. Nos prédios incolores, as vidraças há muito partidas são trocadas por pedaços de papelão ou tabiques de madeira, o que os torna ainda mais feios.


    Por toda parte projetam-se para o alto esqueletos de edifícios que jamais serão terminados, como o famoso prédio da Lagoa, assim chamado porque um dia, em 1975, os engenheiros descobriram debaixo dos alicerces um curso d'água que há de derrubá-lo um dia desses. Mesmo assim, em 1993, quando a guerra explodiu nas províncias, 600 deslocados invadiram os 16 andares do prédio da Lagoa. 


    Não há luz, a menos que se faça uma barra funda (o equivalente à nossa gambiarra), e se roube energia de algum lugar, com fios desencapados perigosamente dependurados aqui e ali. Água também não tem: é preciso buscar na única torneira, no térreo, e subir até 16 andares com o balde na cabeça. Esgoto, muito menos: urina e fezes são transportadas até o térreo ou atiradas no fosso vazio do elevador. 


    O projeto original previa uma varanda que não existe: há apenas uma laje estreita, sem nenhuma proteção lateral, sobre a qual mulheres acrobatas penduram roupas e crianças equilibristas correm para lá e para cá, com o vazio e a queda para a morte a poucos centímetros dos pés descalços.


    Moradora do prédio da Lagoa, Inês Bernardo Antônio, vinda da província de Kuanza-Norte, 41 anos, "cinco filhos em vida e quatro mortos por essas doenças que dão dentro do corpo e matam crianças", carrega água 13 andares para cima, até que a coluna não aguente mais. Então, é hora de pagar aos carregadores de água, fugitivos da guerra que nem ela, que cobram 1 milhão de kwanzas por cada recipiente carregado. 


   Parece muito, mas não é: o equivalente a apenas 20 centavos de dólar, pelo câmbio oficial. Não parece muito, mas é: em Angola, qualquer quantia, por menos que seja, pode significar a distância pequena e infinita entre dois verbos – comer e não comer.


Os escravos do fim do milênio


    É como se o tempo não tivesse passado. Ou insistisse em girar em círculos para se repetir ao infinito, e sempre como tragédia. O tempo que gira em torno de si tem agora a forma linear de uma longa fila de crianças, mulheres e velhos sob o sol da cidade de Kuito, capital da província de Bié, no planalto central angolano. As mulheres, os velhos e as crianças esperam pelos sacos de milho que a caridade internacional lhes reserva uma vez por mês.


    Kuito tem 93 mil deslocados, 25 mil dos quais chegados somente entre o final de setembro e o início de outubro. Vieram de longe, fugindo da guerra no campo, e estão famintos. Mesmo assim, esperam em silêncio pelos grãos que haverão de se transformar no funji, uma espécie de papa feita de farinha de milho e água, que esses refugiados de guerra comerão da mesma forma que comiam seus antepassados quando aqui chegou o navegante português Diogo Cão, em 1482. 


    Continuariam os angolanos a comer o funji durante o tempo em que deixaram de ser gente e se tornarem mercadoria jogada nos porões dos navios negreiros com destino ao Brasil. Acabou-se a escravidão e seguiram os angolanos a comer funji oprimidos pelo colonialismo de Portugal até o ano de 1975, o da Independência, quando, por um breve lapso de tempo, comeram funji sentindo-se finalmente livres.


   É ainda funji que come o povo pobre de Angola ao longo desse quarto de século de guerra civil. E hoje, nessa fila na cidade de Kuito, milhares de angolanos esperam o milho que haverá de se transformar no funji. 


    Rosária Mário, 40 anos e oito filhos, abandonou a lavoura em dezembro, no dia em que a Unita chegou com tanques e armas pesadas. Rosária tem fome e seu corpo se enverga sob o peso do saco de milho que em tese matará a fome da família pelos próximos 30 dias. 


    Donana Maria, oito filhos, dois netos e velhice indefinida, dobra os joelhos e arrasta pelo chão as mãos em concha, já esfoladas, catando os grãos que caíram de pequenos e abençoados furos dos sacos que outros velhos carregam nas costas e mulheres arrastam pela rua afora.


    João Herculano, 19 anos, que sempre morou em Kuito e não é, portanto, um deslocado de guerra, ­embora tenha a mesma fome que eles­, sustenta a mãe e seis irmãos transportando os sacos de milho num carrinho de mão. João não quer dinheiro: cobra 3 kg de milho por cada saco levado do posto de distribuição até o acampamento onde vivem os fugitivos da guerra. Desse jeito, um dia em cada mês, João leva para casa cerca de 20 kg de milho. "Para fazer funji", informa.


    Mas não basta aos refugiados fugirem às pressas da guerra abandonando o pouco que se tem. Não basta a fome, a humilhação da caridade alheia, a espera ao sol pelo funji de cada dia. E aí estão os policiais de farda azul, com pedaços de borracha nas mãos, espancando velhos, mulheres e crianças para “organizar a fila”, como feitores negros a castigar negros escravizados, como se tudo isso não fosse hoje, mas cinco séculos atrás.


    Em Angola, o tempo que se move em círculo tem forma linear: é uma fila interminável feita de gente que talvez nunca na história tenha sido fato livre.



A comida que vem do céu 


  “Qual o nome da planta que dá o milho?”, pergunta o professor. O aluno não pensa duas vezes antes de responder: “PAM”.


    O diálogo, que nunca existiu é na verdade uma crítica bem-humorada dos próprios angolanos à forma pela qual o país depende da ajuda de organizações humanitárias, a exemplo do Programa Alimentar Mundial (PAM), braço das Nações Unidas de combate à fome no planeta.


    Somente em setembro, o PAM distribuiu 13 mil toneladas de alimento para 900mil deslocados. Pessoas que abandonam suas lavras e tudo o que têm por causada guerra, e fogem com a roupa do corpo para as capitais das províncias, ondeencontrarão uma certa segurança, uma tenda de lona e uma planta chamada PAM,de onde brota o milho, o feijão, o óleo e o sal que as impede de morrer de fome.


    “As pessoas têm que comer todos os dias”, lembra o representante do PAM emAngola, o italiano Francesco Strippoli. A frase poderia parecer óbvia. Mas não é. Para que as pessoas comam todos os dias, o PAM e as outras organizações humanitárias se lançam numa verdadeira operação de guerra. 


    São caminhões viajando dias a fio por estradas muitas vezes minadas, fugindo dos ataques da guerrilha. São aviões cargueiros cruzando um espaço aéreo minado, decolando e aterrissando quase na vertical, numa espiral que revolve estômagos, até atingir altitude a salvo da artilharia antiaérea inimiga, para só então seguir em frente. E é preciso seguir em frente, porque as pessoas têm que comer todos os dias.


    “A situação pode piorar, e muito. Estamos no início do tempo de plantio, enão se pode plantar por causa da guerra. Quando o povo consegue colher, não háestradas seguras para escoar a produção agrícola. E não sabemos até quando o PAM terá segurança para continuar a distribuição de alimentos”, teme Strippoli.


    Aos 51 anos de idade, 24 dos quais dedicados a uma guerra desigual contra a fome no mundo, o representante do PAM parece angustiado. Mas não desanima: “O povo angolano é um dos mais sofridos do mundo. Temos a obrigação de construir o dia de amanhã, deixar sementes no terreno”.


    Plantar sementes onde desde há muito só se semeia minas e cruzes é uma missão difícil, mas necessária e possível, acredita Strippoli. A receita? 


    “Não sermos cínicos diante das milhões de tragédias de Angola.”   


Dinheiro

(para alguns, a guerra não é mau negócio)



    “Também se ganha dinheiro na guerra.”


    O gás, subsidiado pelo governo, desaparece dos postos credenciados de venda onde um botijão deveria custar 15 milhões de kwanzas (cerca de US$ 3), para materializar-se no mercado paralelo custando cinco vezes mais. Ou até 17 vezes mais, em Huambo. 


    Em Kuito, a gasolina, de uso prioritário das Forças Armadas nesses tempos de guerra, anda ausente das bombas onde um litro custaria 220 mil kwanzas (cerca de US$ 0,04), mas reaparece milagrosamente na praça, ao preço de 10 milhões (US$ 2), para quem quiser ou puder.


    Manuela, a mulher que carrega sozinha oito tragédias nas costas, é a autora da frase que abre o primeiro parágrafo desse capítulo. Manuela descobriu por conta própria que se ganha dinheiro na guerra.


    Recordemos que na guerra de 1993, os moradores da Kuito sitiada organizavam patrulhas para buscar comida, em caminhadas noturnas de até 100 km de distância, andando por território minado, sob o risco permanente de emboscadas. Mas nem todos os famintos participavam dessas missões meio suicidas.


    “Os que tinham medo e dinheiro, os comerciantes por exemplo, ficavam em segurança. E pagavam pela comida que a gente arriscava a vida para conseguir”, lembra Manuela.


    Uma caneca de milho era vendida aos ricos por 200 mil kwanzas (US$ 0,04). Um copo d'água, que ao pobre muitas vezes custava uma bala na cabeça, saía quase de graça para quem podia pagar 50 mil kwanzas (US$ 0,01). 


    Não dava para acumular capital. “Eu tinha milho, mas não tinha sal. Então, vendia um pouco de milho para comprar um pouco de sal”, lembra Manuela.


    Mas há quem ganhe muito dinheiro com a guerra, como demonstram os Mercedezs-Benz, os Volvos e os Audis de luxo que arriscam suas suspensões eletrônicas de última geração nos velhos buracos do asfalto de Luanda. Protegidos pelo ar condicionado, os que vão a bordo, sequer abrem os vidros elétricos. Nem chegam a ouvir os gritos dos vendedores pobres que oferecem pilhas de rádio, papel higiênico cor de rosa, lâmpadas fluorescentes. Talvez nem vejam os mutilados que estendem a mão.


Duas angolas

(riqueza e miséria frente a frente, numa noite de sexta-feira)


    Em pleno centro de Luanda, o Havana Café é um enclave de riqueza no país destroçado pela guerra e a miséria sem fim. Nessa noite de sexta-feira, enquanto pais ricos desembolsam US$ 120 para aplaudir o brasileiro Emílio Santiago, seus filhos ricos dançam no Havana Café, embalados pelos sucessos da MTV. Penteados bem-feitos, roupas de grife, perfumes da moda.


    Alegres, bonitos, perfumados, pagam 36 milhões de kwanzas (cerca de US$ 7)por uma caipirinha de maracujá. Vale mais que o salário de um professor angolano (30 milhões) – ou mais do que ganham juntos um cabo (20 milhões) e um soldado (13 milhões) para matar e morrer no front – a capirinha que se bebe essa noite de sexta-feira em Luanda, num bar cuja parede em pátina vermelha exibe o retrato de Che Guevara, o revolucionário que dedicou a vida a banir as misérias do mundo.


    São quase duas da madrugada. Do lado de dentro e na calçada do bar lotado, sob o olhar atento dos seguranças, os filhos ricos da guerra de Angola bebem, dançam, namoram e riem (Quem disse que dinheiro não traz felicidade?). 


    Mas eis que de repente uma outra Angola invade o campo de visão dos jovens que empunham garrafinhas de cerveja sul-africana de 15 milhões de kwanzas: em frente ao Havana Café passa agora um caminhão de transporte coletivo, sem capota, desses de carregar angolano pobre, apinhado de gente.


    O caminhão traz pendurados nas barras de ferro, suados e amarrotados, os jovens da outra Angola, que também vestem suas roupas de sexta-feira. Roupas pobres, mas as melhores que a falta de dinheiro pode comprar.


    As duas Angolas se olham por uma fração de segundo. Não se reconhecem. 


Os jovens do Havana Café suspiram de alívio: sabem que jamais precisarão embarcar num caminhão como esse, mesmo que a guerra dure para sempre. Os jovens do caminhão também suspiram, mas por saber que nunca entrarão num bar como esse, ainda que a guerra um dia acabe.


                                                             



 
 
 

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