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A Felicidade é um ato político

Atualizado: 28 de jul.

(revista Traços nº 14 / fevereiro de 2017)


Por José Rezende Jr.

Fotos: Thaís Mallon / @thaismallon


Um dos mais criativos, inquietos e produtivos nomes da cena teatral brasiliense, Alexandre Ribondi encena peça com jovens LGBTQI+ na cidade com a menor renda per capita e o maior número de evangélicos do Distrito Federal



Revista Traços nº 14

O ensaio é interrompido pelo barulho ensurdecedor. Algo parecido com uma pesada chuva de granizo que sem dar aviso desaba sobre o telhado do Ponto de Memória, o museu comunitário da Estrutural. Mas o equívoco logo se desfaz. Não é granizo, é algo bem pior: uma chuva de pedras atiradas por mãos humanas carregadas de ódio. 


Refeitos do susto, o diretor Alexandre Ribondi, o assistente de direção Morillo Carvalho e o elenco – jovens gays, lésbicas e trans da Estrutural – retomam o ensaio da peça que já não será mais a mesma. De agora em diante, o texto, que retrata a rotina de intolerância vivida pelos homossexuais na cidade mais pobre e mais evangélica do DF, ganha uma nova cena: o momento em que o barulho ensurdecedor da intolerância, em forma de pedras desabando sobre o telhado, interrompe por alguns instantes o ensaio de uma peça que se chama Felicidade.


Mas por que uma peça sobre algo tão triste quanto a intolerância se chama justamente... Felicidade


“O texto foi construído a partir das vivências dos próprios atores e atrizes, que são vítimas de preconceito, discriminação, violência e abuso sexual. Histórias que às vezes a gente tem vontade de tapar os ouvidos para não ouvir. Apesar de tudo, essas pessoas não desistem, elas estão sempre procurando construir sua própria felicidade. A felicidade é um ato político. Porque, se além de tudo, nós ainda formos infelizes, é sinal de que eles venceram”, afirma o diretor. 


Eles quem, Alexandre Ribondi?


“Os escrotos, os egoístas, os preconceituosos. Os incapazes de compreender o sofrimento do outro, de estender a mão ao outro, de acolher a reivindicação do outro.”


Em resumo: os que atiram pedras, no sentido figurado e literal.



Fotos: Thaís Mallon


Solidão 


Um dos mais criativos, inquietos e produtivos nomes da cena teatral brasiliense, Ribondi perdeu a conta das peças que escreveu e dirigiu. “Trabalho com teatro desde os anos 70, dirijo desde 1981. Com a média mínima de uma por ano, ou até duas, dá quanto? Não lembro, não sei. Sempre fui ruim de matemática”, desculpa-se. 


Numa carreira tão vasta quanto admirada, que relevância pode ter uma pequena peça com atores e atrizes amadores da Estrutural? Para Ribondi, toda a relevância do mundo. Desde os anos 80 ele sonhava com esse texto. Não exatamente este texto – construído ao longo de seis meses de oficina na Estrutural – mas algo nessa linha. A ideia original era falar sobre adolescentes LGBTQI+ de qualquer lugar da cidade ou do planeta. 


“Seria uma peça sobre a solidão que esses adolescentes são obrigados a enfrentar. Quando um jovem negro é vítima de preconceito ou sofre alguma agressão física na rua, ele chega em casa e encontra seus iguais: o pai, a mãe e os irmãos, negros como ele, capazes de sentir e dar algum alívio à sua dor. Mas se um jovem homossexual é vítima de violência, ele volta para casa e não tem com quem desabafar, não tem com quem buscar conforto, já que seus familiares são heterossexuais, não conhecem a sua dor. É uma solidão terrível.” 


Quiseram o destino e a parceria com o Inesc – ONG que trabalha pela ampliação da participação social em espaços de deliberação de políticas públicas – que a temática, apesar de universal, fosse transposta para um cenário específico: a Estrutural, região administrativa do DF com a menor renda per capita (pouco mais que meio salário mínimo) e o maior número de evangélicos (cerca de 46% da população), segundo a Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílio (PDAD) 2015, da Codeplan.


“Isso faz toda a diferença. Uma coisa sou eu, homossexual do Plano Piloto, onde em caso de violência eu pelo menos tenho um advogado a quem recorrer, e isso pode inibir os agressores. Na Estrutural, você é sozinho”.


Não sozinho-sozinho de tudo. Gays, lésbicas e trans da Estrutural contam uns com os outros. Por razões de sobrevivência, inclusive. 


“Procuramos andar juntos, por medo de encontrar um desses grupos homofóbicos. Eles te olham torto, xingam, jogam pedra. Quanto mais afeminado você for, maior o risco”, conta Fábio William, 21 anos. 


Pedras


Assim como a chuva de pedras que interrompeu o ensaio acabou incorporada à narrativa, o medo de andar sozinho nas ruas também faz parte do espetáculo. Numa das cenas, os atores e atrizes estão todos juntos, agarrados uns aos outros, olhando em volta, visivelmente assustados, como se a sua orientação sexual fosse algo passível de punição. E muitas vezes é. 


“Já fui apedrejada na saída de uma festa aqui na Estrutural”, conta Thainá Caminho, 27 anos, única mulher trans do elenco. 


Mas, justiça seja feita, o preconceito e a violência não são exclusividade da Estrutural nem de qualquer outro lugar de baixo poder aquisitivo.


“Uma vez eu estava esperando o ônibus no Plano Piloto, na W3 Sul, quando um homem começou a me xingar desde lá do outro lado da avenida. Aí ele passou a jogar pedras em mim e veio com um galho de árvore para me agredir. Por sorte, outras pessoas me socorreram”, conta ela.


Desde muito cedo, Thainá teve a violência inscrita no histórico de vida. Por conta das humilhações e agressões físicas, foi obrigada a abandonar os estudos ainda na 5a série. “E sem estudo, sem qualificação, fica difícil arranjar trabalho. Além disso, quem quer dar emprego pra um homem que se veste de mulher? Eu me vejo como mulher, eu SOU uma mulher, mas os outros me veem simplesmente assim: um homem vestido de mulher”.





O grito


Embora o preconceito se espalhe por todo o Distrito Federal, o Brasil e o mundo, o grande número de moradores evangélicos na Estrutural – muitos dos quais enxergam a homossexualidade como abominação ou pecado – é um complicador a mais.


“Eles te julgam, dizem que você está com o demônio. Eu achava que tinha algo errado comigo, que se eu rezasse bastante eu poderia deixar de ser quem eu era”, conta Jéssica Pereira, 22 anos.


“Eles veem a gente como algo viral, tipo: o mal veio para a nossa comunidade”, relata Tatiana dos Santos, 21 anos. “Olham pra mim e dizem: Deus vai te salvar, minha filha. Como se eu precisasse ser curada de alguma doença grave. Esta peça é o nosso grito: Chega!” 


Um grito que ecoa em silêncio durante todo o texto e que aparece em alto e bom som na cena do jogral, quando cada ator/atriz recita um pedaço do texto:


“Eu tinha 5 anos... Eu sou homossexual... Eu fui abusada por alguém da minha própria família... Sempre achei que a culpa fosse minha... Eu sentia como se meu corpo não me pertencesse... Não consigo nem imaginar... Mas agora... CHEGA!


Pelo menos dois dos oito integrantes do elenco contam que sofreram abuso sexual, por pessoas próximas. Mas o grito final é coletivo.


“Quando abordamos a questão do abuso sexual durante a oficina, foi uma catarse. Não houve quem não chorasse ao ouvir aqueles relatos”, conta o assistente de direção, Morillo de Carvalho.


Resguardo


O plano inicial, que seria encenar a peça em meia temporada no Plano Piloto (teatro Goldoni) e meia na própria Estrutural, acabou alterado. Primeiro, pela inexistência de teatros na Estrutural, ou pelo menos um espaço que comportasse o cenário, o som e a iluminação. Mas também por outro motivo, explica o assistente de direção:


“A questão foi trazida pelos meninos. Ainda é muito difícil assumir a homossexualidade na Estrutural, e começamos a pensar nas opressões pós-peça, pois a gente vai embora, mas eles continuarão aqui. A solução que encontramos foi organizarmos um ônibus, para o último final de semana, em que os moradores poderão se inscrever e ir. É um resguardo.”


Em nome do resguardo, o educador popular Walisson Lopes de Souza, 21 anos, sai de casa na Estrutural para as aulas de filosofia na Universidade de Brasília (UnB) vestido com roupas convencionais. Ao chegar na Rodoviária do Plano Piloto, ele veste a saia e envolve os cabelos num turbante.


“Já quebrei várias barreiras, consegui desconstruir muito preconceito. No Plano Piloto eu uso saia sabendo que no máximo vão me olhar. Mas aqui é um território evangélico, homofóbico e machista”, explica. 


Mas se no Plano Piloto é possível andar de saia (pelo menos na UnB), há outro tipo de preconceito a ser enfrentado, inclusive na UnB: o preconceito social contra a periferia em geral e a Estrutural em particular. Pelo baixo poder aquisitivo e pelo alto índice de violência, mas também pelo estigma do Lixão – o aterro sanitário gigante em torno do qual a cidade se constituiu e onde alguns dos atores e atrizes da peça trabalharam quando crianças, coletando do lixo tudo o que tivesse algum valor.


“Muitas vezes estou conversando com uma pessoa e tá tudo muito bem, mas quando eu digo que moro na Estrutural a conversa vai minguando... minguando... Uma vez alguém me disse assim: ‘Não posso namorar com você porque você mora na Estrutural’”, conta Walisson.  





O tapa 


Lucas Meireles, 21 anos, optou por enfrentar o perigo de peito aberto. Não apenas porque sua altura (1,80) pode inibir eventuais agressores, mas por uma questão de afirmação, de militância.


 “A homofobia vai te matando um pouquinho a cada dia. Ela começa com a piadinha e pode chegar à violência física. Querem nos proibir de ser o que somos, mas eu saio na rua de maquiagem, faço até drag queen. Quanto mais viado, melhor. Esta é a minha militância, minha forma de ajudar a mim mesmo e aos outros depois de mim. Fico muito feliz quando alguém mais jovem do que eu vem me dizer que fui um exemplo para ele, que graças a mim ele teve a coragem de se assumir.”


Feliz, Lucas manda um recado para eles:


“Essa peça é um tapa na cara da sociedade. Vocês vão ter que engolir a nossa felicidade.”


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Com a palavra, Alexandre Ribondi


Sobre o teatro político:


“Esta peça me traz de volta...de volta não, porque eu nunca abandonei o teatro político, mas ela é um reencontro com aquele teatro dos anos 70, feito durante um período muito complicado do Brasil. Um teatro com finalidades políticas, feito com muitos riscos. E este reencontro é importante não só porque toca no assunto da homossexualidade de forma bem positiva, mas também pelo sentido de união, porque todos nós aqui reunidos lutamos por uma mesma causa.”


Sobre o direito de requebrar:


“Ser bicha desmunhecada é uma luta política. É o direito de requebrar, de ser pintosa, de ser bichona. Esconder o pinto entre as pernas, como faz o Lucas muito bem, é também um posicionamento. Precisamos remodelar nosso pensamento, parar de pensar que a bicha desmunhecada é apenas uma quá quá, uma ridícula. Não é! Não é! Pelo contrário: é uma pessoa que está marcando posicionamento. Ela está se impondo, e ela tem o direito, e essa manifestação tem que ser considerada bonita e digna.” 


Sobre os avanços da luta:


“Agora estamos descobrindo, de fato, que as possiblidades humanas são infinitas. Como  a questão da nova família, que aparece na peça: uma drag queen é o pai de um bebê que está na barriga de um homem trans. Isso antes seria visto como monstruosidade, agora muita gente vai ter que conviver com isso. Claro que tem pessoas que vão querer chutar, vão querer enfiar uma faca, vão querer matar. Mas essas pessoas vão ter que aprender a conviver com isso. Porque a gente não vai voltar atrás. Nós não vamos dar nenhum passo atrás.”


Sobre as felicidades: 


“A experiência de felicidade que esses oito atores têm, por serem da Estrutural, é bem diferente da minha experiência de Plano Piloto. As minhas chances de ser feliz são maiores. Mas a minha felicidade é um bem de consumo, é um produto lançado no mercado: ser-feliz. É comprar o que eu quero, ir aonde eu quero, ter algum dinheiro pra gastar com coisas que eu quero. Eles [atores e atrizes da peça], e isso é muito fantástico, eles têm que construir a felicidade. A felicidade não está exposta em vitrine alguma, inclusive porque ali [na Estrutural] não existe vitrine, não tem loja com vitrine. Você tem que construir a sua própria felicidade.” 








 
 
 

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