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A LENDA DO SANTO DE PEDRA

Correio Braziliense, 27 de fevereiro de 2000

Por José Rezende Jr.


No começo do mundo, o bloco de pedra com uma cruz e um brasão português em alto relevo apareceu na praia. E deu de fazer milagre. Um dia, policiais militares levaram embora o santo de pedra. No lugar, deixaram uma imitação de cimento. Que nunca curou nem dor de dente.


O esforço é grande e o homem é pequeno. Eu, Diogo Cão, navegador, deixei, Este padrão ao pé do areal moreno E para diante naveguei. (Fernando Pessoa)


    Cauã (RN) ­ Foi no começo do mundo. E por “começo do mundo” entenda-se o tempo em que era vivo o avô de dona Florzinha. É certo que nessa época o mundo já estava cansado de existir, mas dona Florzinha, que tem 52 anos e mora numa casinha de pau e barro que talvez só espere a próxima chuva para cair de vez, não dispõe de instrumento melhor para medir e expressar a antiguidade do mundo. Pois foi, então, “no começo do mundo”, acredita dona Florzinha, que o bloco de pedra com uma cruz e um brasão em alto relevo apareceu na praia. E deu de fazer milagre.

    Ela não sabe, mas foi num começo de mundo muito mais velho, no tempo do avôdo avô do avô... de dona Florzinha, lá pelos idos de 1501, que os portuguesesda esquadra encarregada de tomar posse da recém-descoberta terra que tudo dáplantaram esse padrão ao pé do areal moreno. 


    Ou então, há quem acredite, foi ainda um ano antes, mais precisamente no dia 22 de abril de 1500, que o fidalgo Pedro Álvares Cabral, repetindo a tradição inaugurada 18 anos antes na África pelo navegador Diogo Cão, mandou fincar o marco de posse com a cruz da Ordem de Cristo e o brasão de Portugal em frente à enseada defendida pelos arrecifes nesse porto seguro que hoje se chama Praia do Marco. E deu por descoberto o Brasil, embora a história que todo mundo conhece conte que o “porto seguro” da carta de Pero Vaz de Caminha fica bem mais embaixo, lá no Sul da Bahia.

    Uma coisa, porém, é certa: o padrão da Praia do Marco é o mais antigo monumento cravado pelos descobridores no Novo Mundo. Outra coisa, também, é certa, pelo menos para os trezentos e poucos moradores do povoado de Cauã: o bloco de pedra é milagroso. Por isso ficou conhecido como “o santo cruzeiro”. Por isso, 24 anos depois, Cauã ainda lamenta o dia em que os policiais militares vieram de longe, enchendo as botas de areia e maresia, e levaram embora o santo de pedra. No lugar, ficou uma imitação de cimento barata. Que nunca curou nem dor de dente.



A alma é divina e a obra é imperfeita. Este padrão sinala ao vento e aos céus Que, da obra ousada, é minha a parte feita: O por-fazer é só com Deus.


    Cauã parece ter mudado pouco desde o começo do mundo. O telefone mais próximo fica a 15 km. As casas são quase todas de taipa: esqueletos de vara vestidoscom barro que torram ao sol das longas estiagens e apodrecem na chuva. Algumas têm pouco mais de 1,80 m de altura, porque já não há pau de árvore de bom tamanho nesse pedaço de capitania que nos dias dos índios era só floresta.

   

Cauã vive dos peixes que o mar empresta. A principal fonte familiar de renda costuma ser a aposentadoria dos velhos: R$ 130,00. As casas não têm banheiro.Água, há que se apanhar nas lagoas que correm por entre as dunas e transportar no lombo dos burros ou dos homens. Não tem posto médico, nem médico. “Acho que veio um doutor no ano atrasado, por causa da política”, lembra dona Quefa, 73 anos. 


    Há uma televisão com antena parabólica gigante no meio de uma das duas únicas ruas do arraial (que são de poeira ou lama, dependendo da época do ano). E é só isso Cauã. Mas houve um tempo em que por ali havia também uma pedra de fazer milagre.


    Nas tempestades, as mães acordavam no meio da noite e faziam promessas


Santo Pedra Cruzeiro do Sul

às pressas pela volta dos filhos que pescavam no mar tenebroso – e o santo cruzeiro valia. Léguas e léguas distantes dos médicos e suas anestesias, as mulheres de Cauã, cujo destino era parir dez, vinte filhos, pediam um bom parto, mais um – e o santo cruzeiro valia. Doentes da cabeça, do tronco, dos membros pediam a saúde perdida – e o santo cruzeiro valia.


    “De tudo a gente pedia. E de tudo a gente era valida”, lembra dona Maria Moura de Souza, 60 anos, 23 filhos sem médico nem anestesia.


    Em Cauã, o por-fazer, que sempre foi muito, era com Deus e o santo cruzeiro.


E a Cruz ao alto diz que o que me há na alma E faz a febre em mim de navegar Só encontrará de Deus na eterna calma O porto sempre por achar.


   E vinha romeiro e pagador de promessa de todo canto, para implorar por um milagre ou quitar a graça alcançada com fogos de artifício, fitas coloridas e ex-votos de madeira ou cera imitando as cabeças, as pernas e os braços curados pelo poder do santo cruzeiro. 


    Vinha gente só conhecer a pedra da qual os fiéis arrancavam lascas que convertiam em chá milagroso. “E três dias depois, da onde a gente tinha arrancado pedaço, sarava e nascia outro pedaço de pedra igual, que nem ferida cicatrizada”, jura Josefa Tenório da Silva, a dona Quefa.


    Mas qual o mistério do cruzeiro santo? “Ele não é obra da mão do homem”, garante o pescador João Batista Varela, o Viola. “Foi Pedro Álvares Cabral que trouxe ele”, garante o menino Diogo Costa, repetindo o que aprendeu na escola de Pedra Grande, sede do município. “É, esse Cabral andou muito pelo mundo, pode até ter trazido o santo cruzeiro. Mas não foi ele que fez”, retruca Viola.


    “É obra da natureza”, ensina a professora Vicência Nascimento, 49 anos, 13 filhos. 


    “Pra mim, foi Deus quem fez e mandou ele do céu pro nosso mar”, aposta Maria Tonico da Costa, a dona Florzinha, que mede a antiguidade do mundo pela velhice do finado avô e escreveu na fachada da casinha de taipa: “Corta-se cabelos, mas não fiado. R$ 3,00”.


    Obra do homem, de Deus ou da natureza, o padrão da Praia do Marco foi levado embora em 1976. O Instituto do Patrimônio Histórico e Geográfico decidiu que acrendice do povo de Cauã acabaria por destruir o padrão, de tanto tirar lasca para fazer o chá milagroso. Mas esqueceu o principal: foi justamente o povo de Cauã quem salvou o primeiro monumento histórico do Brasil português de ser tragado pelas marés. Ao longo do tempo, por gerações e gerações, a comunidade foi cuidando de mudá-lo de lugar, mais para cima ou mais para o lado, sempre a salvo do persistente avanço do mar.


    E foi assim que a pedra milagrosa foi parar em Natal, meio perdida numa das salas da Fortaleza dos Reis Magos. Enquanto isso, a Associação dos Moradores e Amigos de Cauã (Amac), ONG criada por iniciativa do casal Humberto e Tânia Teixeira (que se mudaram de Natal para construir a única pousada da Praia do Marco), luta pela volta do monumento. 


    “Vamos construir um memorial para o marco, onde haverá uma sala para os ex-votos: afinal, foi a religiosidade do povo que fez com que ele existisse até hoje”, lembra Tânia.


    Enquanto o santo cruzeiro não volta, seguem os pescadores enfrentando as tempestades sem que suas mães tenham a quem invocar nas promessas urgentes (Deque adianta fazer promessa, como lembra o ex-pescador Sebastião Barbosa, 67 anos, se para pagá-la é preciso viajar até Natal, gastando um dinheiro que ninguém tem?)    E é assim, sem a proteção do santo padrão português, que Francisco Oliveira, Edmilson Tenório e José Lenílson empurram para o mar a jangadinha à vela cujonome de batismo traduz o estado de espírito da tripulação: Feliz nas Ondas.


    Longe do porto seguro, muitas léguas mar adentro, onde o mundo é feito de água, céu e solidão, os três navegadores temerão as baleias, os tubarões e as nuvens que bebem água salgada e nesse beber criam o redemoinho que arrasta as embarcações para o abismo sem fim. À noite, não dormirão em paz, cuidando de manter acesa a lâmpada à querosene, para que os grandes navios petroleiros não os arrebentem ao meio na escuridão.


    Mas seguirão felizes nas ondas: “O mar é mais leve que a terra”, ensina Francisco, ­ ainda que a aventura de cada dia e cada noite, quase tão incerta quanto a vivida pelos descobridores que trouxeram esse padrão do outro lado do mundo, só dê em troca R$ 40,00 por semana.


    (Como dizia o navegador Diogo Cão nos versos de Fernando Pessoa que ajudaram a contar esta história: o esforço é, de fato, grande. O homem é que talvez não seja assim tão pequeno.)


 
 
 

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