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A NOITE DOS OSSOS QUEBRADOS

Atualizado: 28 de jul.

Correio Braziliense, 14 de fevereiro de 1998 Por José Rezende Jr.

Conteúdo Sensível


Rafael começou levando só uns tapas, mas agora está morto a socos, pontapés e golpes de pau e pedra, linchado pela multidão. Os legistas dirão no laudo que Rafael morreu de traumatismo craniano. Mas, sabendo que só isso não traduzirá o massacre, dirão aos leigos: “A cabeça não tinha um único osso inteiro.”




ilustração: Fernando Lopes  @fernandolopesilustrador


PRÓLOGO


   1º de janeiro de 1998. Luís está deitado de costas no asfalto que une e separa os conjuntos 8 e 9 da QNQ 1, Ceilândia. Os olhos, muito abertos, fitam as estrelas da primeira noite do ano. Mas talvez já não vejam nada. Adriano tenta levantar o irmão. É pior: do buraco de bala que tem na nuca, sai o esguicho de sangue que mancha as pernas da calça branca de F.B.W, 16 anos, vizinho e amigo de Luís e Adriano. 


    O tiro, à queima-roupa, partiu agora há pouco do revólver de D.S.X., que tem 17 anos e muita sorte: conseguiu fugir. Rafael, irmão do assassino, deu azar. Está imprensado contra o muro pelos amigos de Luís. Até agora, levou só uns tapas. Os amigos ainda não sabem que Luís está morto. Quando souberem, quebrarão os ossos da cabeça de Rafael. Todos os ossos.


   Sem querer, uma mulher sela o destino de Rafael. “O Luís tá morto!”, grita a mulher. Desesperado, Adriano chora o irmão perdido. Rasga, arranca do corpo e atira no chão a camisa azul de manga comprida. Dez minutos depois, alguém apanhará a camisa azul e com ela cobrirá o rosto deformado de Rafael, que começou levando só uns tapas e agora está morto a socos, pontapés, golpes de pau e pedra. 


    Os legistas dirão no laudo que Rafael morreu de traumatismo craniano. Mas, sabendo que só isso não traduzirá o massacre, dirão aos leigos: “A cabeça não tinha um único osso inteiro.”



 DEZ MINUTOS


    Aos 16 anos, F.B.W, o garoto que sujou as pernas da calça branca do réveillon com o sangue do amigo Luís, tem apenas a 6ª série. Trocou os estudos pelo trabalho: prepara crepes e saladas numa lanchonete num shopping do Plano Piloto. Ainda não teve tempo de pensar no futuro. Como gosta de dirigir, talvez venha a ser motorista de caminhão. “Sei lá”, resume. A mesma resposta vale para a pergunta sobre o que sente desde aquela noite em que ajudou a matar Rafael: “Sei lá.”


    Entre todos os suspeitos de participação no linchamento ouvidos até agora pela 19ª Delegacia de Polícia, na Ceilândia, e pela Delegacia da Criança e do Adolescente (DCA), na Asa Norte, F.B.W. foi o único a assumir a culpa, ­embora não sinta culpa. “Eu dei cinco chutes nele. Aqui, aqui e aqui”, confirma o adolescente., mostrando no corpo quase franzino os locais onde atingiu Rafael: peito, barriga, costelas.


    Quando a pergunta é “por que você ajudou a linchar o garoto?”, ele troca o “sei lá” pela convicção: “Um dos meus melhores amigos estava lá, morto, no chão, o sangue dele espirrou na minha perna. Todo mundo bateu. Eu também”.


   O “todo mundo”, segundo seu depoimento à polícia, pode ser supostamente medido em 11 jovens entre dezesseis e vinte e poucos anos. Mas Alessandro Souza, 20 anos, irmão de F.B.W e porteiro de um prédio em Taguatinga, acha a estimativa modesta. Alessandro jura que não participou do linchamento, mas diz ter visto tudo do lado de dentro da grade de ferro da casa da mãe.


   “Foram mais de 20 pessoas. Todo mundo queria tirar uma casquinha. Gente que nem era da rua, mas conhecia o Luís, chegava e dava pelo menos um chute no moleque. Ele estava caído, acho que já tinha até morrido, e o pessoal ainda batia com pau na cabeça dele. Foram uns dez minutos de pancadaria”, lembra Alessandro.


    Alessandro e F.B.W. não sabem em que momento exato do massacre Rafael morreu. Mas acham que a morte demorou a chegar. Nos primeiros tapas e nos socos seguintes, garantem os dois irmãos, Rafael ainda desafiava os carrascos.


    “Ele falava assim: ‘Se vocês me baterem, eu volto aqui amanhã e mato um por um’. Quando o pessoal soube que o Luís tinha morrido e começou a bater de verdade, ele ainda falava assim. Depois, começaram a dar paulada na cabeça dele e ele parou de falar. Só ficava lá caído, tremendo e gemendo. E o pessoal batendo e jogando pedra”, conta Alessandro.


    “Quando eu dei os chutes nele, ele ainda estava em pé”, lembra F.B.W. “Aí deram uma banda (rasteira) nele e ele caiu. Levantou e caiu de novo. Ficou assim, tomando chute, caindo, levantando, caindo... até que não levantou mais. Ficou lá com o melado (sangue) escorrendo na cara. Depois, taparam a cabeça dele com a camisa do Adriano, irmão do Luís. Camisa novinha, azul, da M. Officer.”



TEATRO DO ABSURDO


   Nos dicionários, comédia e tragédia têm sentidos opostos. É assim desdea Grécia Antiga. Mas Ceilândia começou 1998 mostrando como uma pode levar à outra. “Comédia”, segundo o Aurélio, significa “obra ou representação teatral em que predominam a sátira e a graça.” Já no idioma dos adolescentes de Ceilândia, “comédia” é sinônimo de “otário”. A tragédia começou assim:


    Luís André Pereira Reis, 23 anos, empregado de uma firma de esquadrias de alumínio em Taguatinga, resolve passar o réveillon na casa da namorada, que mora no condomínio Privê. Bota uma muda de roupa na mochila, caminha até a parada do ônibus, mas, na última hora, desiste da namorada e resolve comemorar o ano novo com os amigos da rua.


    Ele então volta para casa, guarda a mochila e vai para a rua, onde já há pelo menos 30 pessoas, ­ a maioria jovens, ­ bebendo cerveja e vinho. São várias rodinhas de amigos. Luís, que será o pivô do primeiro linchamento da história da capital da República, escolhe um dos grupos, onde está o melhor amigo, Alex Oliveira, 18 anos, subgerente da mesma lanchonete na qual F.B.W. trabalha.


    À meia-noite, Luís e Alex se abraçam, fazem planos de juntar uma turma para assistir à Copa do Mundo (na tevê, não na França). Luís, botafoguense, provoca o flamenguista Alex, aposta que Romário será cortado da seleção.

    Por volta de 1h da madrugada, cinco jovens moradores da Expansão do Setor O passam pela rua: Rafael e seu irmão, D.S.X, acompanhados de outros três. Um deles, numa cadeira de rodas.


    Rafael, que meia hora depois será linchado, encara Alex e Luís. Depois, pede cerveja a outra rodinha de amigos, onde está F.B.W. O grupo nega o pedido. Rafael insiste. Alguém provoca: “Tem cerveja pra você não, seu comédia.” Rafael faz com a mão um sinal que pode ser traduzido assim: “Espere por mim”. E se afasta com o irmão e os amigos. Volta uns dez minutos depois, só com o irmão.


    Rafael e D.S.X. se aproximam de Alex e Luís. Rafael pergunta: “E aí?” Sem esperar a resposta, saca o revólver. Alex e Luís têm a mesma ideia: jogam suas garrafas de cerveja nos dois irmãos. Um deles (ninguém sabe ao certo) começa a atirar em Alex, que corre de costas. São quatro tiros: um atravessa sua mão, outro raspa o pescoço, outro resvala na cintura e deixa um pedaço de chumbo na carne, o último risca o tornozelo. Alex nasce de novo. Luís vai morrer em seguida.


    No desespero, Luís se abraça com Rafael. D.S.X. chega por trás, dá um único tiro, na nuca do rapaz, e foge correndo. Rafael quer correr, mas o peso do corpo de Luís atrasa a fuga. É a fração de tempo suficiente para que os amigos de Luís agarrem Rafael e o espremam contra o muro. Até que a mulher grita a sentença de morte: “O Luís tá morto!”


    Alex perde muito sangue, desmaia e é levado para o hospital. Quando acorda, não acredita que sobreviveu. Chora a morte do melhor amigo e lamenta não ter podido ajudar a matar Rafael. “Eu queria pelo menos sonhar que estava chutando a cara dele”, murmura.



NÃO MATARÁS


   De um lado, o conjunto 8. Do outro, o 9. No meio, o asfalto desbotado da QNQ 1. Cada lado da rua tem umas 15 casas, quase todas muito pobres. Algumas exibem reformas que começaram há muitos anos e talvez nunca cheguem ao fim: o provisório se eterniza um pouquinho a cada dia. 


    Há automóveis nas garagens e na rua. Mas é difícil ver por ali algum modelo que já não tenha sido há muito abandonado pelas fábricas: um Opala meio devorado pela ferrugem, um Passat com a pintura toda gasta, um Corcel II cujo vidro já não fecha, a Brasília de cor indefinível que, não suportando mais o peso da família, esfola a barriga de aço no asfalto.


    Grades e portões de ferro, imponentes e robustos, protegem barracos modestos de reboco e forro de zinco. Sinal de que ali é preciso defender com unhas e dentes o pouco que se tem. 


    Uma das casas mostra um cartaz colado no vidro da porta da sala: “Nesta casa somos todos católicos”. Outra família, evangélica, pregou uma placa de metal na fachada verde: “Forte sou naquele que me fortalece”.


    Não se sabe se são católicos ou evangélicos aqueles que sob as estrelas da primeira noite do ano seguiram uma recomendação da Bíblia,­ “Olho por olho, dente por dente”, e descumpriram outra, “Não matarás”.


EPÍLOGO


    Duas semanas depois da opção bíblica daquela noite, a vida parece seguir o seu curso normal. Mas não segue. Oscila entre a dor pela morte de Luís, o ódio a Rafael ­ que dá nos moradores a vontade de matá-lo outras mil vezes, ­e o medo de que os amigos do garoto linchado façam a mesma escolha: “Olho por olho, dente por dente”.


    Enquanto isso, a QNQ 1 cumpre sua lei do silêncio, que só é quebrada para falar do misterioso carro (um Fiat, um Fusca ou um Passat, ninguém sabe ao certo), cheio de jovens mal-encarados, que passa pela rua desde o acontecido, feito uma ameaça ambulante. E se forem os vingadores do garoto linchado?


Na dúvida, os parentes de Luís trancaram a casa e foram embora. A família de dois jovens supostamente envolvidos no linchamento fez a mudança na última quinta-feira. Alex está escondido em algum lugar do Distrito Federal. F.B.W. mudou de cidade.


No dia seguinte à desgraça, duas mulheres esfregaram o asfalto para lavar o sangue dos mortos. Mas, logo depois, pintaram no meio-fio duas cruzes negras, a primeira marcando o local da morte de Luís, e outra, dez passos à frente, no ponto onde Rafael ficou estendido, a cabeça com todos os ossos quebrados. 


    É como se apagando e ao mesmo tempo eternizando a tragédia, traduzissem essas duas mulheres o paradoxo que a rua escolheu: esquecer e lembrar para sempre.





 
 
 

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