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A PRIMEIRA SESSÃO DE CINEMA

Atualizado: 28 de jul.

Correio Braziliense, 19 de junho de 1996 Por José Rezende Jr. Foto: Glaucio Dettmar / @glauciodettmar


Algumas famílias estão sentadas dentro das carroças que usam para tirar do lixo o pão de cada dia. “Olha lá! É mais grande que a gente!”, gritava Cido, 11 anos, sob o céu estrelado, olhos fixos na tela enorme brilhando no meio dos barracos escuros e da silhueta das árvores do cerrado.



meninos assistindo filme no cinema voador na Estrutural

    No princípio, eram as trevas e a poeira. Aí vieram um gerador a diesel, para apagar a escuridão, e um caminhão-pipa, para molhar a terra. Veio também um ônibus que, em vez de passageiros, tinha dentro uma máquina misteriosa, feita de engrenagens e lâmpadas. E fez-se a luz. E do facho dessa luz nasceram imagens em movimento, imagens gigantescas como nunca se viu antes e dificilmente se verá de novo algum dia ou noite.


    E foi assim que as crianças e muita gente grande da invasão da Estrutural, moradores de barracos de tábuas, sem luz e sem água, descobriram o cinema. Um Cinema Voador. Foi amor à primeira vista.


    “Olha lá! É mais grande que a gente!”, gritava Cido, 11 anos, sob o céu estrelado, olhos fixos na tela enorme brilhando no meio dos barracos escuros e da silhueta das árvores do cerrado.


    Cido nunca foi ao cinema e não vai à escola desde o dia em que brigou com a professora. Sabia desenhar o nome, mas esqueceu. Da primeira sessão de cinema ele nunca vai esquecer. Foram três noites mágicas, compartilhadas por 5 mil pessoas. Algumas sentadas com as famílias dentro das mesmas carroças que usam para tirar do Lixão o pão de cada dia.


O CINEMA E O CÉU

 

    Na sexta-feira, foi a vez do filme-pancadaria Condições de Alerta. No sábado, as crianças vibraram com o desenho animado Todos os Cães Merecem o Céu. Em seguida, acharam “muita malvadeza” o que os brancos fazem com os índios em Avaeté, A Semente da Vingança, de Zelito Vianna.


    No domingo, a noite mais feliz de todas, com o Menino Maluquinho, de Helvécio Ratton. Os gritos e as gargalhadas só se calaram na hora em que o Maluquinho pergunta: “Vovó, quando o vovô dorme ele fica frio?”


    À morte do vovô seguiu-se o silêncio. Dava para ouvir o ronco daquela máquina misteriosa, feita de engrenagens e lâmpadas. Mas a tristeza durou pouco. Logo, o sorriso de Micael, 13 anos, brilhava no escuro. Se Micael já tinha visto cinema antes? “Olha, tio, eu nem sei onde fica esse tal de cinema que o senhor tá falando. É bonito que nem esse daqui?”


    Cleber, 12 anos, seguiu o facho de luz da tela até a janelinha do ônibus do Cinema Voador. E foi assim que descobriu um pedaço da magia: “Ah, agora eu sei! É uma roda, que fica rodando com uma fita dentro. Mas como a imagem fica grandona desse jeito?” 


    Ubiratan, 12 anos, ficou triste ao perceber que aquela noite não seria eterna: “Por que o cinema tem que ir embora? Por mim, ele ficava para sempre. Eu não ia enjoar.”


    Sem saber que o cinema era voador e logo bateria  asas, os irmãos Maurício, 11 anos, Marcelo, 9, Willian, 7, e Wesley, 5, só queriam devorar cada cena de Todos os Cães Merecem o Céu e o pacote-gigante salgadinho de milho Micão, que compraram por R$ 1,00.


    E o filme termina assim, com a imagem dos quatro irmãos felizes para sempre. E a certeza de que todas as crianças merecem o cinema.


O DIA SEGUINTE


   Na manhã da última segunda-feira, quando Joelino Ferreira, um dos seis funcionários do Cinema Voador, começou a desmontar as arquibancadas na invasão da Estrutural, os moradores protestaram. Achavam que o cinema era para sempre. Agora, pensam em fazer um abaixo-assinado para que seus fins-de-semana sejammenos áridos. Querem tirar do pouco que têm o que for preciso para pagar pelo menos o diesel do gerador.


    Há tanto tempo na estrada do cinema, José Damata ainda se emociona com cenasassim. Inventor do Cinema Voador, ele era menino quando viu, a céu aberto, o primeiro filme da sua vida, ­Tarzan, o Rei do Deserto ­, na praça de Xique-Xique, Bahia.


    Damata investiu em dois projetores, de 35 e 16 mm, uma tela de 12 x 6 m, arquibancadas para 1.200 pessoas e 3 mil watts de som. Em junho de 1995, conseguiu que o BRB realizasse o sonho de levar o cinema aonde o povo está, exibindo basicamente filmes brasileiros.


    Quando terminar, no final do ano, o projeto Cine BRB Céu Aberto terá sido visto por 240 mil espectadores de 15 cidades do Distrito Federal e mais 14 do Entorno.


“Somos um país sitiado por oito novelas diárias, um genocídio cultural. Mas estamos competindo com a televisão. E levando a melhor”, comemora Damata. 


    Se dependesse do menino Ubiratan, que naquela noite mágica na Estrutural jurou nunca enjoar do cinema, a vitória era garantida: 


    “Televisão eu já vi. É só um quadradinho pequeno. Mas cinema... Parece que a gente cabe dentro da tela!”



 
 
 

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