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O HOMEM QUE NÃO AMAVA AS MULHERES

Atualizado: 30 de jul.


Correio Braziliense, 12 de maio de 1994Ilustração: Fernando Lopes / @fernandolopes (da série Crimes Violentos)

Conteúdo Sensível


Os colegas custam a acreditar que ele seja capaz de fazer o que dizem que fez. Enviam cartões de apoio. Mandam publicar abaixo-assinado em jornais, ressaltam qualidades do colega: alegre, solidário, elevado senso de humanidade. Nilma, a companheira, também não acredita que Walter seja culpado: “Ele tinha as mulheres que queria.”




  ilustração: Fernando Lopes   @fernandolopesilustrador

LUZ E SOMBRA


   12 de maio de 1994. Tarde da noite. A Brasília bege pára sob o viaduto. A negociação é rápida. Sandra entra no carro. Tem 17 anos e vai fazer o último programa da sua vida. 


A essa hora, o Setor de Diversões Sul é uma vitrine de pernas e seios. Mais para perto da avenida W 3, território dos homens metamorfoseados em mulheres, a diversão é esculpida em silicone. Beira a perfeição. Meio quilômetro para baixo, nas imediações do Conic, as garotas de programa tomam o lugar dos travestis: agora, a carne é de verdade, com seus acertos e imperfeições.


   Por ali passa o trânsito mais lento da cidade. Carros vêm e vão a 10 km por hora. Pesquisam e acariciam os corpos com suas luzes.


   A Brasília bege pára em frente ao Dragão, um restaurante chinês. Os faróis tateiam as curvas louras de Luciana, a garota mais bonita desse lado escuro da cidade. A beleza de Luciana resiste à claridade. Assim, ela está sempre do lado da luz, em frente à fachada iluminada do Dragão. Longe de ser tão bela, Sandra, a garota que vai morrer esta noite, vive exilada na penumbra dos viadutos.


  Luciana tem 19 anos, é estudante e mora com os pais numa comercial da Asa Sul. A mãe sabe como ela ganha a vida. O pai a mata se descobrir. 


  Como de costume, Luciana exige pagamento adiantado. Irritado, o motorista da Brasília bege, um rapaz moreno claro, forte, de barba cheia, grita que tem dinheiro e manda a garota entrar. Luciana não entra, insiste no pagamento antecipado. 


  Furioso, o motorista da Brasília diz que a cara de Luciana está marcada para sempre. E arranca na direção de Sandra, que está 80 metros mais à frente, sob o viaduto. Antes, Luciana vê de relance o revólver no porta-luvas sem tampa da Brasília. Em seguida, vê que Sandra acabou de fechar negócio e vai entrar no carro.



SANDRA


   Sandra tem menos de 1,60m de altura. Não chega a ser gorda, mas tem seios grandes e uma barriguinha saliente que não escapam às gozações das colegas de trabalho. Cobra mais barato e não costuma recusar programas. Compensa a falta de atributos físicos com um atendimento de primeira. Os clientes sempre voltam. 


  Sandra não é de muita conversa. Ninguém sabe seu verdadeiro nome, muito menos o endereço. A única amiga é Maria da Paz, doméstica de 27 anos que complementa o orçamento fazendo ponto na Panther Night, uma boate encravada na lateral do Conic, na parte inferior, de frente para o Hotel Nacional.   Uma vez, as duas fizeram um programa juntas. Maria viu com os próprios olhos o tratamento que Sandra dispensou ao cliente. Sandra trata a todos com respeito e muito carinho. Por isso, eles voltam. 


  Sandra não bebe, nem fuma. Depois do trabalho, as colegas costumam sair para se divertir. Ela não vai nunca. Mas nesta noite, 12 de maio de 1994, parece especialmente feliz. Surpreende Maria da Paz com o convite para esticar a noite. 


  Sandra quer ir ao Lago Sul dançar no Gilberto Salomão, lugar de gente chique. Por isso, veio tão arrumada: bermuda branca, miniblusa e jaqueta pretas, meia-calça fina, sapato preto de saltinho e uma pochete da mesma cor. Tudo parece combinar. 


  Sandra e Maria da Paz ficam de se encontrar mais tarde. Sandra quer fazer alguns programas antes: primeiro o dever, depois o prazer. Afinal, ela precisa terminar de pagar a televisão nova e o lote no Céu Azul, onde sonha construir um barraco de quatro cômodos. 


  Sandra e o sonho embarcam na Brasília bege. Como sempre, ela vai tratar o cliente com carinho e respeito. Em troca, terá muitos ossos quebrados.



JAQUELINE


   Abril de 1994, um mês antes da morte de Sandra. Jaqueline tem 19 anos e está em pé na calçada do Bar e Restaurante Nogueira, ao lado do Dragão, quando a Brasília bege estaciona. Ela não imagina o perigo. Sandra, sua colega de trabalho, só será assassinada em maio. Por enquanto, o cara da Brasília é apenas um cliente, como qualquer outro. 


  Ele quer “serviço completo”. Jaqueline informa o preço, exige pagamento adiantado. Avisa que sem camisinha, nada feito. Nem sexo oral. Negócio fechado. A Brasília arranca para o Parque da Cidade. 


  No trajeto, enquanto espera a hora de fazer sexo com o desconhecido, Jaqueline mata o tempo explorando o interior do carro. Vê um crachá da Telebrasília. Consegue ler o primeiro nome, “Walter”, e o último, “Junior”. O motorista percebe e diz que o crachá é de um amigo. Jaqueline olha para o rosto do homem: é o mesmo da foto. 


  A garota sugere o primeiro estacionamento. O cliente argumenta que prefere o terceiro, perto do pavilhão da Festa dos Estados, que é mais ermo. Precisa de tranquilidade para se concentrar, explica. 


  O terceiro estacionamento está completamente deserto e escuro. Jaqueline começa a ficar com medo. Se houver algum problema, ninguém ouvirá seus gritos. Mas é tarde demais para desistir. 


  O cliente abre a calça. Quer que ela o beije ali. Jaqueline tira um preservativo de dentro da bolsa, mas o cliente anuncia que não transa de camisinha, contrariando o que fora combinado antes. Jaqueline resolve desfazer o negócio. Propõe devolver o dinheiro. 


  “E você pensa que eu já não ia mesmo pegar meu dinheiro de volta?", ri o cliente, olhando pela primeira vez nos olhos dela. 


  O cliente agarra os cabelos da garota, torce até arrancar alguns fios e puxa a cabeça dela na direção do seu pênis.



PEDAÇO DE MIM


   Jaqueline é uma moça bonita. Quem a visse hoje não imaginaria tratar-se da mesma criança doente do Gama, com bronquite asmática e sopro no coração, que alternou boa parte da infância entre a casa e o hospital. Mas aos 13 anos, começou a ficar bonita. Tão bela que o pai, um policial militar, começou a perder-se em longos olhares. Elogiava a beleza da filha. Depois, acariciava os cabelos dela, os mesmos que estão agora nas mãos do homem da Brasília bege. 


  As mãos do pai deslizavam do alto da cabeça de Jaqueline e desciam até parar nas pontas dos cabelos da filha. Mas com o tempo, passaram a prosseguir na descida: tocavam os ombros, roçavam de leve a curvatura dos seios. “É sem querer?”, Jaqueline perguntava-se. 


  Não era. Um dia, após entrar no quarto da filha e encontrá-la quase nua, o pai resolveu declarar seu amor feito de desejo e culpa. 


  “Você é um pedaço de mim. Mas, que Deus me perdoe, eu queria ter conhecido você antes da sua mãe. Queria não ser seu pai.” 


  Jaqueline teve pena. E medo de contar a verdade à mãe e ser responsável pela desgraça familiar. Esperava que aquilo passasse. Mas não passava. 


  O pai se masturbava olhando para a filha, pedia: “Vem. Esquece que eu sou seu pai.” 


  Jaqueline saiu de casa aos 17 anos, atrás do primeiro namorado. Engravidou, voltou para casa. O pai parecia querer a filha mais do que nunca. Um dia, Jaqueline contou tudo para a mãe. Ganhou um tapa no rosto, pelos anos todos de silêncio, e foi expulsa de casa.


UMA ETERNIDADE


   Agora, está no Parque da Cidade, grávida de novo, fazendo sexo oral com um desconhecido que quase arranca seus cabelos. 


  Jaqueline sente falta de ar, tem vontade de vomitar. Quer que o cliente acabe logo, mas ele não acaba nunca. Jaqueline perdeu a noção de tempo, mas imagina que está assim há mais de 15 minutos. Ela conhece a técnica, costuma tornar os clientes muito rápidos. Mas esta noite, não. 


  A boca já está dormente, a cabeça e os cabelos doem muito. Uma eternidade depois, o homem finalmente acaba. Jaqueline sente o nojo invadir sua boca. Mas pensa que agora está livre. O cliente solta seus cabelos, ela abre a porta da Brasília. Bota uma perna para fora do carro, quer ir embora, nem que seja a pé. 


  Mas o cliente é mais rápido: debruça-se sobre a garota e puxa a porta com toda a força. Jaqueline sente o osso da perna se partindo. Grita de dor. Ele ri: 

  “Pensa que terminou? Pois eu quero de novo.” E puxa os cabelos dela outra vez.  


 Jaqueline faz sexo oral novamente com o homem que acaba de quebrar sua perna. Tenta uma segunda fuga, mas o cliente é mais forte, torce seu braço, quebra-lhe o pulso. Furioso, ele começa a bater a cabeça dela na porta do carro. O sangue escorre. Ele passa então a esmurrar o nariz e o queixo de Jaqueline. Em seguida, desce do carro, abre a porta do lado do passageiro, para que a garota caia no chão. O cliente agarra o seio de Jaqueline com uma das mãos e com a outra mão, recomeça a esmurrar seu rosto. 


  Jaqueline consegue abrir os olhos meio cobertos de sangue: o cliente está se afastando. Mas vê quando ele pára, volta-se na direção dela e dá um último chute no seu rosto. 


  Quando abre os olhos de novo, Jaqueline está no Hospital de Base, onde ficará oito dias internada. Vai sofrer um aborto, fará uma cirurgia para retirar um coágulo na altura do ouvido, terá vários pontos no rosto e o braço direito meio torto. 


  Depois de um mês, quando tirar o gesso da perna direita, Jaqueline verá que ela atrofiou. Mesmo assim, vai voltar para o Conic. Ficará noites a fio sentada no Bar e Restaurante Nogueira limitando-se a olhar os carros que passam, com medo de todos eles. A essa altura, Sandra já terá sido morta. Mas ninguém terá certeza disso, ainda.



A QUEDA


   Quase uma hora da madrugada. Leuza Rodrigues, moradora do primeiro andar do bloco G, na comercial da 704/5 Norte, vê televisão enquanto a sobrinha não chega. De repente, ouve o barulho de algo muito pesado caindo no chão. 


  Chega na janela e vê a moça caída, completamente imóvel e em silêncio. Mais tarde, a moça será identificada como Sandra, garota de programa com endereço e nome completo ignorados, e a enterrarão como indigente. 


  Com medo de se envolver com qualquer coisa que seja, Leuza apaga a luz e fica quieta no quarto. Cinco minutos depois da queda, ela começa a ouvir uns gemidos. Começam baixinho e vão se avolumando. Em seguida, ouve passos de alguém descendo as escadas. 


  Chega à janela e vê quando Walter sai do prédio e entra na Brasília bege, estacionada do outro lado da rua. Walter manobra o carro por alguns poucos metros, até o corpo estendido no chão. Quer dar a impressão que acabou de chegar. Desce do carro e grita para a vizinha que está na janela: 

  “Eu estou chegando agora!” 


  Walter ergue a moça até deixá-la sentada. Então, solta o corpo dela de repente, deixando que a cabeça bata no chão, com força. Repete o gesto várias vezes. A moça geme cada vez mais alto. O som da cabeça batendo no asfalto é tão insuportável que Leuza vence o medo e grita, da janela:   “Pára com isso! Você vai acabar de matar a moça!” 


  Walter decide então levar a moça ao Hospital de Base, onde a joga no chão do pronto-socorro. Vai embora correndo, sem explicação. 


  Por fora, ela parece inteira, mas geme e grita como uma louca. Os médicos a levam para a Psiquiatria. Só mais tarde descobrirão que ela tem hemorragia interna e fraturas espalhadas por todo o corpo. Os médicos ainda farão duas cirurgias para salvar a vida da desconhecida. Inútil. Sandra vai morrer depois de 22 horas de agonia.



O CASAMENTO


   Julho de 1994. Dois meses depois da morte de Sandra. Maria Deusdete Rodrigues desembarca na Rodoferroviária. Veio de Palmas, capital do Tocantins, onde mora, disposta a casar a filha. Alessandra tem 17 anos. Desde os 13 namora Manoel, 15 anos mais velho. Deusdete ainda não sabe que a filha está morta. 


  A mãe de Alessandra tem uma lojinha de roupas em Palmas. Nunca aprovou o namoro da filha com o pedreiro Manoel. Mas há muito tempo desistiu de lutar contra esse amor. 


  Se não pode separá-los, Deusdete quer pelo menos legalizar a união do casal, que mora em Santo Antônio do Descoberto. O problema é que Alessandra está desaparecida desde maio. Ela ia todos os dias ao Riacho Fundo para ajudar a irmã, Cristiana, que acabara de ter um filho. 


  Um dia, deixou de ir. E sumiu. Cristiana não tem notícia da irmã. Manoel não sabe da companheira: pensa que o amor acabou e ela foi embora sem dizer adeus. 


  Deusdete e sua irmã, Margarida, que mora no Gama, começam a procurar Alessandra, feito duas doidas. Perguntam aos vizinhos, vão à polícia, botam anúncio em rádios de Brasília e Goiânia. Cansada, Deusdete volta para Palmas, onde aguardará notícias. É a melhor amiga da filha, pensa que sabe tudo sobre ela. Só não sabe que Alessandra, uma adolescente que adora viver, dançar e viajar, virou garota de programa. E que foi jogada de um prédio, agonizou um dia inteiro e acabou enterrada como indigente, porque ninguém sabia que a garota de programa Sandra e a sua Alessandra eram a mesma pessoa.



SUICÍDIO


   Quem investiga a morte de Alessandra é a Delegacia de Delitos de Trânsito (DET), já que as primeiras informações davam conta de que a vítima teria sido atropelada. Pela placa da Brasília bege, anotada pela enfermeira do Hospital de Base, a Polícia chega ao homem que “prestou socorro”: Walter. 


  Convocado a depor, Walter não consegue explicar ao delegado Durval por que abandonou a atropelada no chão do hospital e saiu correndo. Diz que teve medo de ser responsabilizado pelo atropelamento. Não convence ninguém. Quando os legistas concluem que Sandra morreu de uma queda, Walter muda a sua história. Reconhece que contratou a moça para um programa no seu apartamento. Conta que ao fazer sexo pela segunda vez, percebeu que a camisinha estava furada. Resolveu brincar com a moça: disse que estava com Aids. 


  Na versão de Walter, Sandra teve um ataque histérico, vestiu a roupa, pediu para ser levada embora e aproveitou para se atirar da varanda enquanto ele preparava um copo de leite na cozinha. 


  Até o fim, Walter insiste na tese do suicídio. Mas o motorista da Brasília bege não dá sorte com os legistas. Um laudo complementar revela que, pela posição do corpo no chão, Sandra não se jogou. Foi jogada. E mais: quando caiu, ela estava deitada. Provavelmente, desmaiada devido a uma pancada muito forte na cabeça.



O RETRATO DO AVESSO


   Enquanto isso, a polícia tenta descobrir o verdadeiro nome da morta, que não levava nenhum documento na bolsa. Os policiais vão ao Conic, conversam com as garotas. Elas têm medo de polícia. E mesmo que não tivessem, não poderiam ajudar muito. Para elas, Sandra era só Sandra. 


  Mas uma das garotas se lembra: uma vez Sandra disse que morava em Santo Antônio do Descoberto. 


  Os agentes começam a bater de porta em porta com a fotografia da falecida. Chegam a Manoel, que avisa a Cristiana, irmã de Alessandra, que avisa à tia Margarida. 


  O próximo passo, o mais difícil, é avisar Deusdete, a mãe de Alessandra. Margarida telefona para Palmas. Anuncia que tem notícias da sobrinha. Não diz se as notícias são boas ou más. 


  Deusdete pega o ônibus para Brasília. Da Rodoferroviária, segue para acasa da irmã Margarida. Pensa que vai reencontrar a filha. Trouxe as roupas mais bonitas do estoque da sua lojinha em Palmas. São para Alessandra. 


  Vai tirando as peças de roupa da mala, mostrando para os parentes reunidos e pensando no quanto Alessandra ficará bonita com cada uma delas. Até que ninguém agüenta mais ouvir aquilo. Primeiro, dão-lhe o chá de erva cidreira. Em seguida, a notícia: “Sua filha está morta.” 


  Alessandra já havia sido enterrada, como indigente. No Instituto Médico Legal, Deusdete vê apenas as roupas da filha, lembra que a bermuda branca veio da lojinha de Palmas. Os legistas mostram a fotografia do cadáver. A mãe abraça, afaga e beija o retrato, dizendo: “Eu te amo tanto, minha filha...” 


  Na foto, Alessandra está nua e feia. Quase disforme. Tem um corte monstruoso, mal costurado, que vai do pescoço até o ventre. 


  “Abriram ela toda, viraram pelo avesso e fecharam de qualquer jeito”, pensa a mãe, entre a tristeza e indignação. Francineide, 19 anos, a prima preferida, tem a fotografia na memória: 

  “Tão inchada que não parecia gente. Era como um boneco de borracha que a gente vai enchendo, enchendo... Só a boca continuava igual: meio torta, que nem quando ela ria ou tinha raiva.” 


  Deusdete prefere esquecer o retrato e guardar a lembrança da filha sorridente que, um dia, abandonou os estudos ainda na 6ª série com uma só justificativa: 

  “Mãe, a vida é bonita e curta demais. Não dá pra perder tempo. Tem que viver ela depressa.”



RUTH


   Um ano antes de Jaqueline e Sandra, outra garota de programa entrou na Brasília bege e por pouco não saiu morta. Foi assim: numa noite de maio de 1993, a goiana Ruth, uma esteticista de 21 anos que também fazia a vida no Conic, estava debaixo de um viaduto quando uma Brasília parou diante dela. 


  Ruth e o cliente foram para o Parque da Cidade. Lá o motorista exigiu sexo anal. Ela recusou: aquilo não estava no trato. O motorista insistiu, agora com violência. Ruth conseguiu sair do carro e fugir correndo para a escuridão do Parque, enquanto o motorista tentava atropelá-la. 


  Seis meses depois, outra noite, o mesmo viaduto. Ruth entra num Chevette branco. O motorista parece vagamente familiar. Quando ela percebe que o cliente é o mesmo da Brasília bege, só que agora usando barba, já é tarde. 


  O pior é que o homem também se lembra dela. Ele puxa o freio de mão, desce, dá a volta no carro, abre a porta do lado do passageiro. Ruth pergunta: “tem algum problema?”


   Tinha. O motorista arranca a garota de dentro do carro pelos cabelos. Estão perto do Hotel Nacional, mas ninguém vê nem ouve nada. Ele joga Ruth no chão e dá início à sessão de espancamento, com chutes na cabeça, costas e coxas. 


  O cliente se descuida por alguns instantes, procurando as chaves do carro, que caíram na confusão. Ruth consegue correr até o hotel. Durante muitos dias, as dores a impedirão de pentear o cabelo. É possível que perca clientes por isso. Não dirá nada à polícia. Não gosta de se envolver com a polícia. Talvez conte a uma ou outra colega. Talvez nenhuma delas leve muito a sério. Essa vida é mesmo assim, difícil. Seis meses depois, Sandra estará morta.



WALTER


  Walter tinha 14 anos quando começou a trabalhar na Telebrasília, como office-boy. Quando foi preso, em novembro de 1994, tinha 30 e era técnico administrativo, lotado no setor de suprimentos. Ganhava uns R$ 1,5 mil por mês.

 

  Os colegas custam a acreditar que Waltinho, como é conhecido, seja capaz de fazer o que dizem que fez. Enviam cartões de apoio. Mandam publicar abaixo-assinado em jornais, ressaltam qualidades do colega: alegre, solidário, elevado senso de humanidade. 


  Paraibano de Campina Grande, segundo grau completo, Walter perdeu a mãe aos 13 anos. Era recém-nascido quando o pai abandonou a família. Walter só foi conhecê-lo muitos anos depois, quando o pai biológico era vereador em Campina Grande. 


  Walter foi criado pela avó até os três anos de idade. Depois, a mãe casou-se pela segunda vez e pegou o filho de volta. Com a morte da mãe, ele veio para Brasília, adotado pela tia, uma advogada que acreditaria na sua inocência e o defenderia com unhas e dentes até o fim. 


  Nos últimos tempos, Walter morava em Taguatinga com uma colega de Telebrasília, Nilma. Os dois tiveram uma filha, Ana Luíza, nascida em setembro de 1993. Nilma sempre amou Walter. Vai visitá-lo na Papuda, não acredita que ele seja culpado. 


  “Ele tinha as mulheres que queria. E de todas as que ele teve, eu fui a menos bonita”, chegou a comentar durante o processo. Com isso, queria dizer que o amado não precisava freqüentar garotas de programa com tamanha voracidade. Muito menos espancá-las até a morte. 


  Os dois se separaram pouco antes do crime. Walter não agüentou o ciúme da mulher e foi morar no apartamento de quarto e sala na Asa Norte, de cuja varanda Sandra seria atirada para a morte. 


  Preso no Núcleo de Custódia, Walter bate no peito e jura: “Eu vou sair daqui e provar minha inocência.” 


  Trabalha na cantina da prisão, tem bom comportamento e não usa mais barba. Com 1,77m de altura, pesa 80 kg, 30 a menos que no tempo em que dirigia a Brasília bege pelo Setor de Diversões Sul a 10 km por hora. Na prisão, o futebol e a comida ruim ajudam a manter a forma. 


  Tem saudades de coisas simples: usar um vaso sanitário de verdade, comer de talher. Diz que para cometer os crimes dos quais é acusado, deveria ser um homem que odeia as mulheres. 


  “Como eu poderia odiá-las, se tive tantas mulheres importantes na minha vida: minha mãe, minha avó que me criou, a tia que me adotou, minha ex-mulher...? Não sou nenhum Dom Juan, mas gosto da sedução, da conquista. Eu sempre amei as mulheres.”



O ARCANJO


   5 de dezembro de 1995. Walter está sentado no banco dos réus, olhando fixamente os sapatos, como recomendou o advogado. Deve parecer humilde e inofensivo. Jaqueline, a sobrevivente daquela sessão de tortura e sexo oral no Parque da Cidade, está na plateia, bem mais magra e de óculos escuros. Chora por trás das lentes. 


  Ela não quis ser testemunha de acusação. Teme pela sua vida e pela do filho, de quatro anos. Mas a promotora lê o depoimento que Jaqueline deu à polícia, um ano antes. A leitura arrepia os jurados e a plateia. 


   Sentada na plateia do Tribunal, Jaqueline ouve Walter jurar inocência. Tem vontade de gritar que é mentira dele. Mas permanece em silêncio, chorando algumas vezes e sorrindo outras, quando fica cada vez mais claro que Walter vai ser condenado. 


  Às vezes, Jaqueline abre a bolsa e lê a oração de São Miguel, o arcanjo que derrotou Lúcifer: “E vós, príncipe da milícia celeste, pelo Divino Poder, precipitais no inferno a Satanás e a todos os espíritos malignos que andam pelo mundo para perder as almas”. 


  O julgamento invade a madrugada. Quando o júri decide, por sete a zero, que Walter é culpado, Jaqueline pula e solta o grito preso na garganta. Sai correndo do prédio do Tribunal do Júri do DF, comemorando a condenação. 


  Na rua, cai desmaiada. Jaqueline, a que sobreviveu a tudo, tem leucemia. Está condenada também. Talvez mais do que Walter, cuja sentença é de apenas 18 anos. Se tiver bom comportamento, ele poderá cumprir apenas um sexto da pena: três anos. Como já passou um ano atrás das grades, talvez saia no ano que vem. A não ser que sofra uma segunda condenação, desta vez pelo que fez a Jaqueline naquela noite no Parque da Cidade, dentro da Brasília bege.



O CÉU É AZUL


   A juíza lê a sentença. Os policiais algemam o condenado. Deusdete está na primeira fila, quer olhar bem o matador da filha. Walter percebe o olhar: “Tenho pena da sua dor. Mas eu também estou sofrendo. Não matei sua filha. Reze por ela. Ela se suicidou, a alma dela está vagando até hoje”, diz ele.


   “Rezo, mas sei que minha filha nunca se mataria. Era uma menina feliz”, responde a mãe. Como prova, Deusdete carrega na bolsa a última carta que Alessandra escreveu, no dia 8 de março de 1994, dois meses antes de morrer.


   “A gente compramos uma televisão. Essa é boa e nova. Também compramos um lote no Céu Azul a prestação. Lá não é um lugar muito bom, mas vai ser da gente e não dos outros. Estamos fazendo o possível para pagar logo esse lote. Vamos fazer um barraco de quatro cômodos. O Manoel vai construir. Se Deus quiser vai dar certo.”




Ilustração: Fernando Lopes 

@fernandolopesilustrador


 
 
 

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