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No reino das fantasias

Atualizado: 28 de jul.

(revista Traços, nº 17 / junho de 2017)


Por José Rezende Jr.

Fotos: Thaís Mallon / @thaismallon


Entre o burlesco e o fetiche, o Nostalgique Cabaret convida para uma noite 

onde o desejo é a lei, e mostra como a sensualidade pode ser leve e divertida




Revista Traços nº 17

Seu nome é Alice e você não sabe onde está. Ok, há milhares de chances de seu nome ser qualquer outro, menos Alice, e você sabe exatamente onde está: afinal, você veio por livre e espontânea vontade, pagou ingresso, sentou-se à mesa, à meia-luz, sob um lustre gigante com 12 mil peças de cristal. Acontece que a palavra-chave para essa noite é “faz-de-conta”, e sendo assim... 


Faz de conta que seu nome é Alice e você não sabe onde está. Talvez numa floresta escura, em meio à densa neblina de gelo seco, sob um lustre gigante com 12 mil peças de cristal. Ok, os cristais são falsos, industrializados, mas faz de conta que são cristais de verdade, a mágica matéria-prima do sapatinho da Cinderela. (Aliás, daqui a pouco a Cinderela aparece por aqui, mas com um figurino que quase remete à Roupa Nova do Rei – aquela inexistente, lembra?).


“Alice? Cadê você?”, pergunta o Chapeleiro Louco, no instante em que as cortinas vermelhas escancaram um portal para outra dimensão, um outro mundo habitado por criaturas seminuas que se esgueiram pelas frestas dos  seus desejos mais secretos. “Alice? Cadê você?”, pergunta o Chapeleiro Louco, mas você não responde, você apenas fecha os olhos, ou, ao contrário, você abre bem os olhos, e mergulha na toca do Coelho Branco. 


E pronto: você acaba de cair no País dos Sonhos, também conhecido como Dreamland. Pela próxima hora e meia, seja qual for o seu nome, você estará em companhia de velhos conhecidos de sua infância: Branca de Neve, Peter Pan, Cinderela, Malévola, Aladim, a Pequena Sereia... Mas todas e todos com muito menos roupa do que nas antigas histórias que seu pai e sua mãe contavam para você dormir.



Fotos: Thaís Mallon

A luz vermelha


“São contos infantis para adultos. A ideia, como em todos os nossos espetáculos, é brincar com o imaginário do público”, resume o dançarino e coreógrafo Giovane Aguiar, criador do Nostalgique Cabaret, uma casa de shows diferente das outras que você conhece. 


São três espetáculos em cartaz, encenados em três diferentes sextas-feiras do mês. O Majestique tem um clima de teatro burlesco, o Fantastique vem com uma pegada mais forte, bem fetichista, enquanto Dreamland, o mais recente, alterna elementos do burlesco e do fetiche. No cardápio de todos eles, números de striptease, pole dance, dança do ventre, aero dance, lap dance, muita pele e muitos músculos à mostra, sensualidade em forma de suor escorrendo por todos os poros. O reino encantado das fantasias – no sentido freudiano da palavra.  


“Tentamos mostrar para as pessoas que a sexualidade é algo que todos trazemos dentro de nós. Não há razão para temê-la. Ela faz parte da nossa energia vital, que é o que nos move, o que nos faz acordar todos os dias para viver uma vida plena, com prazer, com alegria”, define Giovane. Mestre de cerimônias dos três espetáculos, ele esclarece em todas as apresentações: “O Nostalgique Cabaret não é a casa da luz vermelha”. 


Inspirado nos tradicionais e sofisticados cabarets franceses, como Moulin Rouge, Lido e Crazy Horse, o Nostalgique de fato não guarda qualquer parentesco com as decadentes casas de prostituição nacionais também conhecidas como “cabarés” ou “casas da luz vermelha”. Se não chega a ser familiar – no sentido de que marido e esposa não costumam levar o restante da família – o ambiente é, no mínimo, bem-comportado. O striptease, por exemplo, nunca vai às vias de fato.


O público é formado sobretudo por casais, mas grupos de amigos e/ou amigas também se divertem, sobretudo nas comemorações de aniversário (aniversariantes do mês não pagam ingresso). E não se espante se na mesa ao lado você avistar uma pin up beijando um cover do Al Capone, ou um Batman de mãos dadas com uma Batgirl (ou com um Robin, por que não?): fantasias são sempre bem-vindas – inclusive aquelas que as pessoas usam sobre a pele. 


Afinal, o bom humor faz parte do show. Não faltam sequer voluntários e voluntárias para subir ao palco e participar de um improvisado “concurso de sensualização”, que, a bem da verdade, é bem mais engraçado que sensual. 


Fotos: Thaís Mallon

Como calar a sua polícia interior


O Nostalgique nasceu meio por acaso. Criador e diretor artístico do Festival Internacional da Novadança – que há mais de 20 anos reúne em Brasília dançarinos e coreógrafos de várias partes do mundo –,  Giovane sentiu que a 15ª edição do evento, em 2011, deveria fazer jus ao tema escolhido: gênero e sexualidade. Decidiu montar um espetáculo com números de striptease, pole dance, dança do ventre, gogo boy e outras danças “malvistas pela sociedade”. 


Mas chegou à conclusão de que um teatro convencional não seria o ambiente certo para o que tinha em mente. Ele então transformou o Espaço JK, do Sesc, numa espécie de cabaret francês: público distribuído em mesas, todo mundo bebendo, comendo e conversando, garçons e garçonetes vestidos a caráter, mestre de cerimônia entre um número e outro, generosas doses de sensualidade.   


O sucesso foi tão grande que a experiência isolada se tornou evento periódico e itinerante, montado e desmontado ao longo do ano em clubes, academias e outros espaços. Até que em 2014 Giovane alugou um galpão de 600 metros quadrados, no Setor de Oficinas Norte, que era então só paredes e teto, e fez nascer o Usina Centro de Arte e Entretenimento, lar definitivo do Nostalgique Cabaret.


A dificuldade inicial foi encontrar artistas já completos, capazes de se expressar por meio de dança, canto, artes circenses e, claro, sensualidade. “Não havia pessoas prontas para trabalhar com a multilinguagem exigida por um cabaret. Dançarinas só dançavam, cantores só cantavam, artistas de circo só faziam números de circo...”, lembra Giovane.


A solução foi criar um curso de formação, em cartaz até hoje no Usina. As aulas de sexy dance, a cargo do próprio Giovane, tornaram-se tão concorridas que acabaram abertas não apenas a pessoas interessadas em integrar o elenco do Nostalgique, mas também ao público em geral, quase todo feminino.


“Não se trata apenas de aprender a dançar de forma sensual”, explica o professor. “Há todas as questões que envolvem o feminino. A primeira coisa que as pessoas aprendem no curso é a reconhecer a sua própria polícia, aquela voz que cada uma tem dentro de si e que diz que tal coisa é errada, que menina não faz isso, que aquilo não pode... Tive uma aluna que não usava sapato vermelho porque a mãe dizia que era coisa de puta. O curso ajuda a reconhecer o que é a vontade própria da pessoa e o que é imposição da sociedade, ou seja, aquilo que é considerado socialmente admissível para uma mulher. Uma vez que reconhece essa diferença e passa a fazer suas próprias escolhas, ela conquista poder. Porque se você faz suas próprias escolhas, então você tem poder.” 


Fotos: Thaís Mallon

Orgulho e preconceito


O elenco atual é formado por dez dançarinas e dois dançarinos. Todas e todos chegaram ao Nostalgique já com alguma experiência artística anterior, seja em teatro, circo, dança ou música. Nenhum deles terá seu nome de batismo revelado aqui. Não porque se envergonhem de sua arte – muito antes pelo contrário – mas para evitar assédios e julgamentos preconceituosos, tanto nas redes sociais quanto na vida real.  


“Muitas pessoas me cumprimentam depois do espetáculo, dizem que não vêm vulgaridade alguma no que eu faço, que se sentem inspiradas pela minha arte, e isso me deixa feliz”, conta a professora de música de 31 anos que dança sob o nome artístico de Lilly Angel. Ela tem dois perfis no facebook, um com o nome verdadeiro e o outro com o de sua personagem. E é nesse último que o preconceito vem à tona. 


“Tem gente que confunde as coisas, que me convida para fazer serviço de acompanhante, que oferece dinheiro para ficar comigo. Nas primeiras vezes eu me senti muito ofendida, depois passei a doutrinar as pessoas, a explicar que o Nostalgique é um local de entretenimento e que ele existe justamente para abrir as cabeças, para mostrar que a sensualidade pode ser uma coisa leve e divertida”.


Ao contrário de Lilly Angel, a colega de elenco Lady Blue, 19 anos, que administra um estúdio de tatuagem, nem perde tempo com explicações. “Nunca me importei com o preconceito, prefiro simplesmente me afastar desse tipo de pessoa em vez de tentar colocar alguma coisa na cabeça de quem não quer entender. Grande parte da sociedade ainda vê o corpo como pecado, enquanto eu acho que ele é lindo e não tem que ficar escondido, não deve ser privatizado.”


Que esses dançarinos e dançarinas exibem artisticamente seus corpos seminus em movimentos sensuais durante as noites de sexta-feira é sabido e até estimulado por familiares, amores e amigos. O problema é o resto do mundo. O preconceito já obrigou uma dançarina a deixar o Nostalgique, caso contrário seria demitida pelo seu empregador diurno. Um outro integrante do elenco, que trabalha na administração pública, chegou a sofrer inquérito administrativo após ter o nome citado numa reportagem. 


“Ainda existe uma ignorância cultural muito grande. Algumas pessoas confundem nossa arte com pornografia ou prostituição”, lamenta Monroe La Von Teese, 30 anos, servidor público. 


Ator desde os 13 anos, artista circense desde os 15 e dançarino desde os 22, Monroe, a depender do espetáculo, pode emergir em cena tanto na pele de um marinheiro másculo, tatuagens e músculos à mostra, quanto no papel de uma mulher muito sexy, de espartilho e salto alto. 


“O que me atrai no Nostalgique é a sua ideologia. Sempre fui um entusiasta do corpo como veículo para a vida. O corpo é onde a gente encontra de fato a iluminação. A transcendência e a felicidade não estão na mente, estão no corpo, e a dança mostra isso muito bem. Infelizmente, a gente ainda vive sob uma cultura de castração, de negação do corpo.” 


Castrações e negações à parte, Monroe tem o apoio incondicional de sua família, inclusive – e principalmente – da mãe: “Ela veio me ver dançar e até botou dinheiro na minha cueca”, ri. 


Para a estudante de antropologia Rouge Valentine, 22 anos, que provoca aplausos e suspiros com suas acrobacias aéreas no trapézio em forma de cubo, o preconceito pode até virar tema de um futuro mestrado. “Penso em estudar os estereótipos feminino e masculino de sensualidade e a performance do corpo dentro do sistema capitalista”, diz.


Mas, para ela, o prazer de voar livre e leve sobre a imaginação do público supera o peso do preconceito.


“Quando estou bem lá no alto, eu olho para baixo e vejo as pessoas me olhando como se fossem crianças espantadas, tipo: ‘Ohhhhh!!! Como ela consegue fazer isso???’ Eu me sinto feliz causando esse espanto, essa admiração. Percebo também olhares de desejo, é claro, mas ali eu estou dentro da personagem, ali eu sou a Rouge Valentine num jogo de sedução com a plateia, e isso é parte do meu número. Você entra numa personagem que não é você, mas que ao mesmo tempo tem traços de você”, teoriza.


A lei do desejo 


A psicanalista pisa o palco com botas de cano alto vermelhas, meia arrastão, corpete de couro e sutiã equipado com pecinhas de metal pontiagudas. Não, a psicanalista ficou no consultório, quem pisa o palco é a personagem, e Lola Montès não veio para analisar ninguém. De chicote em punho, Lola Montès está aqui para distribuir punições – ou recompensas, a depender do modo como você vê as coisas. 


Apaixonada pela dança desde o jardim de infância, passou por balé clássico, jazz, dança de rua e dança do ventre, antes de fincar o salto-agulha no Nostalgique, onde realiza o desejo de se mostrar de forma sensual, ao mesmo tempo em que faz da sua sensualidade uma expressão de poder. 

 

“Numa sociedade machista e patriarcal como a nossa, o poder e a potência estão sempre aliados ao masculino. Antes, quando eu pensava em sedução, eu pensava em fragilidade. Eu sabia que tinha o poder de atrair e conquistar o outro, mas isso me colocava num lugar de vulnerabilidade. Eu conquistava o outro, mas me sentia submissa ao desejo desse outro, eu dependia do olhar dele sobre mim, eu precisava de sua aprovação. Com o tempo, os ensaios, a preparação para subir ao palco, percebi que o que eu julgava fragilidade era, na verdade, força. Hoje, vejo em mim um poder que antes não via.”


Feminista independente, sem ligação com qualquer ala do movimento, a psicanalista sabe que, para alguns setores do feminismo, a arte de Lola Montès pode ser interpretada como a velha e simples submissão da mulher ao desejo masculino. E contra-argumenta: 


“Feminismo, para mim, é o lugar onde a mulher trava a sua luta para ser livre, para se expressar da forma que bem entender – seja por meio da sexualidade, seja por meio da maternidade. Não importa, tanto faz. O desejo tem que ser livre. Uma pessoa livre é uma pessoa atenta ao próprio desejo. Este é o meu conceito de liberdade.” 


O sorriso do gato de Alice


As cortinas vermelhas deslizam em direção ao centro do palco, fechando o portal de acesso ao reino das fantasias. As luzes se acendem. O espetáculo chegou ao fim. Você sai para a noite brasiliense, que é feita de postes de luz, apitos agudos de alarmes automotivos, táxis e ubers à espera. Você está de volta ao bizarro mundo comum. Mas você perdeu a noção de tempo, e espaço. Não sabe se foi tudo um sonho, não sabe se o sonho continua, ou se antes era tudo verdade e você agora sonha com a noite brasiliense, que é feita de postes de luz, apitos agudos de alarmes automotivos, táxis e ubers à espera.


E então você vê o gato. O gato mora por aqui, você logo percebe por causa dos potinhos de ração e água estrategicamente colocados no canto, o primeiro escrito “coma-me”, o segundo escrito “beba-me”. Já não há mais ninguém, os espectadores foram todos embora, só restam você e o gato. Considerando que seu nome é Alice e que você não sabe onde está, você pergunta ao gato:


“Poderia me dizer, por favor, que caminho tomo para sair daqui?”


“Depende bastante para onde você quer ir”, responde o gato – e desaparece no ar, sorrindo de orelha a orelha.


 
 
 

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