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Paixão em dois atos

Atualizado: 28 de jul.

(revista Traços, nº 13 / novembro de 2016)


Por José Rezende Jr.

Fotos: Bento Viana / @bentoviana


Companhia de teatro, espaço cultural, escola de artes, colônia de férias, caminhão-teatro a rodar por estradas de asfalto e poeira Brasil afora, o Mapati comemora 25 anos de vida movido pela paixão da diretora e atriz Tereza Padilha e sua incansável trupe. Uma história que começou a ser escrita a partir do outro significado da palavra “paixão”: a dor.



Revista Traços nº 13

Foi assim: na adolescência, morando no Rio, Tereza saía escondida de casa para ver Célia Biar e outras estrelas no Teatro Português. Queria ser atriz, “mas naquela época isso não era de bom tom”. Já adulta, agora vivendo em Brasília com o marido, o servidor público Marcos Martins de Souza, ela finalmente abraçou a paixão e foi estudar artes cênicas, na Faculdade Dulcina de Moraes, com Dulcina de Moraes, a grande diva do teatro brasileiro. 


Marcos e Tereza tiveram três filhos: Mariana, Patrícia e Tiago – Ma-Pa-Ti. A paixão (no sentido de dor) de Tereza e Marcos nasceu com a morte do filho caçula, quando tinha 2 anos de idade. Para lidar com a perda de Tiago, como se fosse possível lidar com tamanha perda, nasceu o que viria a ser o Mapati.


Fotos: Bento Viana

“Eu tinha que diluir aquela dor. Eu implorava ao meu médico: arranque isso de dentro mim!”, lembra Tereza. 


Na tentativa de arrancar a dor com as próprias mãos, Tereza começou a fazer teatro. Convocou crianças e adolescentes das redondezas da 715 Norte. A trupe passou a ensaiar na rua, ainda de brincadeira, com direito a bolos gigantes confeccionados pela futura diretora do Mapati.


“Eu tinha que colocar aquela dor em algum lugar. Por isso eu comecei a fazer teatro. E eu queria fazer teatro para as crianças, porque acreditava que, de alguma maneira, meu filho Tiago estaria ali no meio, mesmo tendo ido embora”, explica Tereza.


A brincadeira de rua foi crescendo, foi ficando séria... Um dia, a diretoria da AABB convidou o Encrenca para uma apresentação. (Sim, era este o nome do grupo que no futuro se tornaria uma das mais importantes companhias teatrais do Distrito Federal, com vários prêmios nacionais conquistados) 


“A AABB ofereceu almoço grátis pra gente! Imagina: almoço grátis! Era um luxo! Era fenomenal!”, exclama Tereza.


A brincadeira ficou ainda mais séria, mas continuou a ser de rua. Exceto nos dias de chuva. Problema este que levaria a uma solução radical, uma das tantas inventadas por Tereza.


“Não dava pra ensaiar debaixo de chuva. Também não dava pra ensaiar em casa, porque era muita confusão, tinha criança, cachorro, papagaio... O papagaio ficava toda hora repetindo o nosso texto!”, lembra, rindo.


E deu-se o primeiro de uma série de diálogos memoráveis.


TEREZA – Amor, já sei! Vamos fazer um teatro aqui em casa!

MARCOS – O quê??? Não existe teatro em casa!

TEREZA – Então o nosso vai ser o primeiro.

MARCOS – Tereza, mas isso não tá na lei...

TEREZA – Então gente bota na lei.


Marcos acabou cedendo. A decepção veio com o diagnóstico/veredito do engenheiro: “A casa de vocês não tem estrutura que comporte um segundo andar”.


Da frustração veio a solução, outra das radicais de Tereza.


TEREZA – Amor, já sei! Vamos comprar uma casa e transformar num teatro!

MARCOS – O quê???


Compraram a casa, no bloco K da 707 Norte. Contrataram engenheiro para fazer a planta. Pagaram uma nota. Os operários começaram a derrubar a casa. Tudo ia bem até que...


Fotos: Bento Viana

“A Tereza chegou um dia no que havia sido uma casa e encontrou apenas cinco paredes em pé. Não tinha mais casa. Ela começou a chorar”, lembra Marcos, hoje separado de Tereza, mas sempre próximo do Mapati. 


“Não era uma casa. Não tinha teto, não tinha nada. Não tinha nem penico”, lembra Tereza, parafraseando a célebre canção infantil de Vinicius e Toquinho.


E deu-se o novo diálogo:


TEREZA – Amor, já sei! Vamos fazer um teatro no subsolo!

MARCOS – Mas Tereza, a casa não tem subsolo.

TEREZA – Vamos cavar um buraco e fazer o subsolo!


Rasgaram e jogaram fora a primeira planta, encomendaram outra. Pagaram mais uma nota. E mandaram cavar o tal buraco, para fazer o tal teatro no subsolo. 


“Ficamos sem dinheiro até pra bater um prego”, conta Tereza. 


Fotos: Bento Viana

Mas o espetáculo não podia parar. Então, bora encenar peça no buraco mesmo, em meio a tijolos, areia, cimento, andaimes e tralhas e tal. “Mas, Tereza, não tem dinheiro pra comprar cadeira” (deve ter dito Marcos). “Já sei, vamos botar o público sentado em balanços amarrados no teto” (deve ter respondido Tereza).


O diálogo é impreciso, mas o certo é que Tereza correu às madeireiras e arrecadou as pranchas de madeira. Depois, arrumou as cordas. E botou o público sentado em balanços pendurados no teto. (Calma, gente: hoje tem cadeira pra todo mundo.)


Ao todo, a construção do que é hoje o espaço cultural de dois andares e um subsolo arrastou-se por nove anos. Valeu a pena, e muito. O espaço logo se tornou referência na cena cultural da cidade, recebendo montagens do Mapati e de outras companhias, sempre com grande público. Tudo ia bem até que...


Fotos: Bento Viana

TEREZA – Amor, o teatro tá cheio, tá abarrotado de gente, tá tudo muito legal. Mas eu não tô feliz.

MARCOS – Mas por que, Tereza? Você não queria um teatro?

TEREZA – Queria, mas... Já sei! Vamos comprar um caminhão!

MARCOS – Caminhão??? Pra quê?

TEREZA – Pra gente fazer dele um teatro.

MARCOS – Mas a gente já tem um teatro!!!

TEREZA – Então agora nós vamos fazer um teatro pra quem não tem teatro, pra quem não tem condições de pagar ingresso. Já pensou, a emoção das pessoas assistindo teatro pela primeira vez, nos lugares mais pobres deste país???


Compraram, é óbvio, o caminhão. Que virou o caminhão-teatro, que percorreu mais de 150 cidades e atravessou 18 estados (em ordem alfabética): Acre, Bahia, Ceará, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Paraíba, Paraná, Piauí, Rio de Janeiro, Rondônia, Sergipe, São Paulo e Tocantins. Só de Brasília até o Acre foram 3 mil km de estrada.


O teatro sobre rodas teve momentos inesquecíveis, como lembra a atriz Dani Farias.

“Viajar com o Mapati foi parte essencial da minha formação de atriz e de pessoa. A gente chegava na cidade, que muitas vezes tinha só uma rua, e a cidade toda parava. Ia todo mundo ver nosso espetáculo. Na hora de ir embora, tinha criança chorando, tinha gente querendo ‘fugir com o circo’, porque para eles o teatro era o circo. E a gente dentro do microônibus, olhando para trás, e vendo as crianças correndo ‘atrás do circo’, até desaparecerem na poeira”. 


Fotos: Bento Viana

Não satisfeita em dirigir o Mapati, Tereza tirou carteira profissional e passou a dirigir o caminhão-teatro. Marcos também tirou a sua e viaja com a trupe durante as férias do Banco Central. Mas nunca, nesse tempo todo, arriscou-se a subir ao palco que ajudava a montar.


“Nunca tive coragem de submeter o público ao desgosto de me ver atuando”, brinca Marcos, citando a definição de um colega de trabalho: “Eu sou um burocrata no teatro e um artista no Banco”. 


Um dia, o caminhão que era o sonho do Mapati quase acabou com o sonho do Mapati. Conta a caminhoneira Tereza Padilha:


“Foi em 2003, no Mato Grosso. Vínhamos descendo a serra e estávamos com pressa, porque o espetáculo era no dia seguinte. Tinha uma chuvinha fina, e um monte de placa: Perigo, Perigo, Perigo... Mas eu não me atentei ao perigo. A estradinha era muito estreita, de um lado era uma pedreira e do outro o penhasco. Quando eu percebi que estávamos descendo muito rápido, dei a primeira freada. Foi aí que começamos a derrapar. Tinha caminhão atrás de nós e caminhão vindo no sentido contrário. E o nosso caminhão rabiando na chuva. Pensei: Acabou, terminou aqui”.


Nessa hora, Tereza, que havia se tornado amiga de infância de todos os caminhoneiros que encontrava em postos e restaurantes pela estrada afora, lembrou do que um dia disse um deles: Quando o caminhão estiver sem rumo você vai pro rumo que ele quer, e tenta ir ajustando aos poucos, porque se você tentar virar ele, ele não vai te obedecer e você morre. 


“Foi o que eu fiz. Deixei o caminhão ir. O ator que tava ao meu lado, na boleia, gritou: ‘A gente vai morrer!’ e eu: ‘A gente vai morrer mesmo, porra! Vamos pro país dos pés juntos’. Mas aí eu segurei lentamente o caminhão e ele foi voltando. Aí eu joguei ele no pedregulho. E depois eu fiquei sabendo que logo à frente tinha uma curva, e se eu não batesse o caminhão no pedregulho a gente tinha ido embora”.


O Mapati sobreviveu à quase morte e a tantos outros perigos e seguiu em frente, encantando plateias pelo país afora, encenando de clássicos como Os Saltimbancos e O Mágico de Oz a textos autorais que falam sobre cidadania, sobre o direito que tem a comunidade – seja uma cidade ou uma escola – de questionar as autoridades e de cobrar aquilo que lhe é devido.


O engajamento social é uma das marcas registradas do Mapati. Em 1999, a companhia montou Brasileirinho, espetáculo com 20 meninos e meninas em situação de rua. Brasileirinho percorreu o Brasil, foi até o Canadá. Depois, cada um daquele elenco seguiu seu rumo. O menino que fazia o personagem título cresceu e foi assassinado, outros foram presos, mas muitos agarraram a oportunidade e mudaram suas vidas. É o caso da hoje assistente social, ativista e afroempreendedora Danielle Sanchez Mutaledi, que tinha 12 anos quando subiu ao palco pela primeira vez.


“Foi a oportunidade de cada um mostrar seu talento, ganhar algum dinheiro, se alimentar melhor, ocupar espaços, ter acesso à cultura. Até então, assistir a uma peça de teatro estava completamente fora da nossa realidade. O acesso à cultura transformou a vida de muitos de nós”, afirma.


E será que ao longo deste quarto de século o Mapati conseguiu arrancar de dentro do pai e da mãe a dor da perda do filho? Não. Mas, entre outros feitos, arrancou gargalhadas – e algumas lágrimas – das plateias mais pobres, das comunidades mais remotas deste Brasil. 


E há quem acredite que, nestes 25 anos, onde quer que a companhia estivesse, Tiago estava lá, sentado na primeira fila, gargalhando, de vez em quando enxugando alguma lágrima, e aplaudindo feliz as incríveis aventuras do Mapati. 




 
 
 

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