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Literatura TAMBÉM para crianças

Atualizado: 28 de jul.

(revista Traços, nº 34 / outubro de 2020)


Por José Rezende Jr.

Fotos: Thaís Mallon / @thaismallon



Um dos principais autores brasileiros de literatura infantil, Tino Freitas conquistou uma legião de pequenos – e também grandes – leitores, sem fugir de temas delicados, a exemplo do abuso sexual na infância, que aborda em "Leila", uma de suas obras-primas



Revista Traços nº 34

Era uma vez um moço que certo dia resolveu escalar o mapa do Brasil ao contrário e desceu de Fortaleza para Brasília. Veio de mala, cuia e violão, a fim de amplificar o reconhecimento de seu primeiro CD, autoral, gravado na capital cearense. Só que aqui o moço, que foi tocar à noite em bares e restaurantes, conheceu a moça professora e mediadora de leitura que tinha em casa uma biblioteca cheia de livros infantis que o moço, como todo adulto bobo que se preza, desprezava por achar que não tinha mais idade para livros ilustrados. Coisa de criança, que ele há muito deixara de ser. 


Mas eis que numa ocasião o moço ao acaso tirou um livro da estante e deu uma espiada. Depois outro, e depois outro e mais outro. E aprendeu a gostar, e de tanto gostar resolveu escrever, e de tanto e tão bem escrever virou um dos principais autores brasileiros de literatura infantil. 


Publicou 23 livros, vendeu milhares de exemplares (só do Quem quer brincar comigo? foram 180 mil, e do Cadê o juízo do menino?, outros 120 mil), ganhou reconhecimento e prêmios importantes e conquistou uma legião de pequenos leitores – e também de grandes leitores, contando os pais e as mães, e também outros que não são nem pais nem mães mas adoram uma história bem contada. 


E o moço colecionou abraços e sorrisos sem fim, e então escreveu a história de uma baleia chamada Leila, a baleia representando uma criança vítima de abuso sexual, e colecionou abraços e lágrimas sem fim, e no fim, entre sorrisos e lágrimas, o moço foi feliz para sempre.


                                                                   e Fim

                                                                  

Fotos: Thaís Mallon

O cantor, o menino e a flor


Bem, não foi assim tão fácil quanto pode parecer. Aliás, não foi nada fácil, e continua não sendo. Lá se vão 20 anos desde o dia em que Tino Freitas fincou os pés no meio do mapa do Brasil, e dez anos desde que publicou o primeiro livro. Antes disso, teve muito Raul Seixas, Belchior, Gil e Djavan tocados na noite nos bares para gente que às vezes não queria ouvir, mas que também às vezes queria muito ouvir, feito aquele menino em situação de rua que vendia flores pela noite e numa noite sentou-se na caixa de som de um barzinho já extinto e ouviu cada canção em silêncio e no final sem dizer nada o menino recompensou o cantor com a única moeda que tinha: uma flor. 


Todo leitor merece o tapete vermelho


No meio do caminho entre o músico e o escritor teve o projeto Roedores de Livros, criado em parceria com a professora, mediadora de leitura e escritora Ana Paula Bernardes. Em 2011, já funcionando na sede atual (o Shopping Popular da Ceilândia), o Roedores recebeu da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ) o prêmio de Melhor Programa de Incentivo à Leitura para Crianças e Jovens do Brasil. 


Quando o Roedores começou, em 2006, Tino abria os encontros tocando violão, em seguida Ana Paula mediava alguma leitura, e no final era servido um lanche para a garotada. Mas ele logo deixou o violão de lado e tornou-se também mediador de leitura. Até que tomou coragem e escreveu a primeira história infantil, em homenagem ao filho, Pedro, “que sempre teve um lado danadinho”. 


A história virou o livro Controle Remoto, com ilustrações de Mariana Massarani, publicado em 2009.  Pedro, o menino que inspirou a história, hoje tem 20 anos, e o livro do pai faz sucesso até hoje pelo Brasil afora. E os primeiros meninos e as primeiras meninas que liam e ouviam histórias nos Roedores de Livros também cresceram e hoje são moços e moças, e deram espaço a outros meninos e meninas que ainda se sentam no mesmo velho tapete vermelho que existe desde o tempo em que o Roedores funcionava ao ar livre e as formigas pinicavam a bunda dos pequenos leitores, e por causa disso Tino e Ana Paula decidiram que era preciso um tapete para forrar a grama, e o tapete, é claro, tinha que ser vermelho – porque, de tão importante, todo leitor merece ser recebido com um tapete vermelho.


Fotos: Thaís Mallon

Pra que serve a literatura infantil?


“Não faço distinção entre literatura e literatura infantil. Para mim, literatura infantil é um gênero literário como qualquer outro. E a literatura, em qualquer dos seus gêneros, através de seus signos, jogando aqui e ali com o real e a fantasia, nos humaniza, nos aproxima de quem somos, nos dá uma ideia do que fomos e semeia o que buscamos para o futuro. É nessas histórias envoltas em arte que percebemos melhor o outro, aprendemos a viver em sociedade, nos transformamos em cidadãos. Talvez conhecer melhor o outro e a nós mesmos seja a maior serventia da literatura.” 


Além de escritor, Tino Freitas é um voraz roedor de livros infantis. É comum vê-lo sair das livrarias carregado de livros ilustrados, que vão para a sua estante pessoal ou para a biblioteca do Roedores de Livros, ou então se tornam presentes para os amigos queridos. 


“Eu não compro livros ilustrados para os filhos dos meus amigos, eu compro para os meus amigos. Porque literatura infantil não é para crianças: ela é também para crianças. A gente cresce, mas a infância permanece guardada dentro da gente, fica latente. Isso eu entendi antes de ser escritor.”


Era uma vez um tirano


Que o querido leitor e a caríssima leitora não cometam o mesmo erro dos censores da década de 1970, que subestimaram a capacidade que tem a literatura infantil de dizer coisas sérias como se fossem de brincadeira, e por isso deixaram escapar ilesos vários livros para crianças que, em plena ditadura militar, faziam alusão ao autoritarismo e à resistência. Foi o caso de O reizinho mandão, de Ruth Rocha, O rei de quase tudo, de Eliardo França, A fada que tinha ideias, de Fernanda Lopes de Almeida, e Era uma vez um tirano, de Ana Maria Machado, entre tantos outros.


A verdade é que os censores, tão empenhados em mutilar ou mandar para a fogueira filmes, peças de teatro, exposições de arte e livros “imorais e/ou subversivos”, não deram importância à literatura infantil. 


“E foi assim que aquela geração de crianças dos anos 70 cresceu entendendo melhor o que é o autoritarismo. É uma pena que isso precise se retomado nos dias de hoje”, lamenta Tino, estabelecendo uma diferenciação entre os autoritarismos e as resistências de ontem e de hoje, sob a ótica da literatura infantil. 


“Hoje há uma amplificação de textos que abordam questões de gênero, liberdade, diversidade, cultura negra, contos de fadas onde mulheres aparecem como protagonistas e heroínas. A revolução passa pela literatura infantil.” 


A literatura de Tino Freitas vai muito além da simples brincadeira, embora brincar também seja preciso, como mostram alguns de seus títulos mais divertidos, como A Tromba, que de verso em verso vai se desdobrando aos poucos até virar... uma tromba, e Quem quer brincar comigo?, que convida os pequenos leitores a cada vez abrir a porta para um visitante muito especial. 


Em muitos de seus livros, porém, as questões sociais saltam das páginas, ou às vezes nem saltam, ficam lá escondidinhas para quem souber ler (e as crianças sabem, ao contrário do que pensam os censores). Fazem parte do universo do autor temas como a invisibilidade social (Os invisíveis), a difícil formação da identidade (Uniforme), a vida onde tudo falta, inclusive a leitura (Primeira Palavra), e até mesmo assuntos espinhosos, abordados da maneira mais delicada possível, a exemplo do abuso sexual na infância (é o caso de Leila, do qual falaremos no próximo capítulo).


Fotos: Thaís Mallon

O dia mais triste


A vida literária trouxe muitas alegrias para Tino Freitas. Ele vendeu milhares de livros, ganhou reconhecimento e prêmios importantes, conquistou uma legião de pequenos e grande leitores, colecionou abraços e sorrisos – e também algumas lágrimas. Mas houve uma vez uma apresentação numa escola pública da Grande Porto Alegre, em 2014, que o marcou para sempre, do jeito mais triste possível. 


“A escola tinha feito um concurso para escolher o melhor desenho inspirado nos meus livros. No final da minha apresentação, a vencedora do concurso, uma menina entre 8 e 10 anos, veio me entregar uma camiseta com o desenho dela. Eu vesti a camiseta por cima da roupa e, como estava bem gordinho na época, fiquei parecendo uma sardinha dentro da lata. Todo mundo riu, inclusive a menina. Aí, quando ela veio me dar um abraço, eu elogiei o sorriso dela. Na mesma hora a menina fugiu do meu abraço e foi se esconder atrás da saia da professora. Não sei se foi o elogio em si, ou se foi o tom da minha voz, sei que algo funcionou como um gatilho. O autor que ela queria tanto conhecer, e que estava feliz por finalmente conhecer, fez alguma coisa que assustou e despertou uma memória ruim naquela menina. Isso me machucou muito,  mais a ela do que a mim, é claro. Foi o dia mais triste da minha vida de escritor.” 


Tino alertou a professora sobre um possível assédio sexual que a menina havia sofrido ou estava sofrendo naquele momento, e ficou com a história entalada na lembrança. Até que um dia, três anos depois, contou o episódio para a amiga Elvira Vigna. Além de escritora premiada, ela era também artista plástica e havia ilustrado dois livros de Tino, Primeira palavra e O menino que falava pouco. Os dois choraram juntos e decidiram transformar a tristeza em livro. Mas Elvira ficou doente e morreu em julho de 2017, antes que o projeto ganhasse corpo.


“Eu sou uma baleia livre!”


De luto pela perda da amiga e parceira, Tino só conseguiu retomar a história em 2018. O resultado é o sensível e doloroso Leila, em parceria com a ilustradora Thais Beltrame. 


Leila é uma pequena baleia que adora pentear os lindos e longos cabelos, vestir o biquíni e sair para nadar, feliz da vida. Um dia, Leila é seguida pelo seu vizinho, um polvo adulto mal-intencionado chamado Barão, que insiste em nadar junto com ela. Indefesa, Leila não consegue repelir o assédio de Barão, que mexe na alça do seu biquíni e corta os longos cabelos que ela tanto amava. Consumado o abuso, o polvo faz uma ameaça velada: “O que aconteceu aqui será o nosso segredo. Não diga a ninguém”.


Leila mergulha numa tristeza profunda e desiste de nadar. Só recupera a alegria de viver quando encontra forças para confrontar e denunciar o Barão. E ela então lança o seu grito de liberdade: “Eu sou uma baleia livre!”. 


Logo após o lançamento de Leila, em maio deste ano, Tino foi convidado a ler o livro na periferia de São Paulo, num abrigo provisório para mulheres carentes às vésperas do parto ou cujos bebês passam por internação hospitalar. Na plateia estavam também usuárias de uma instituição que atende mulheres em tratamento para dependência química. 


“Ao final da leitura, uma das mulheres levantou a mão e disse: ‘Isso aconteceu comigo, mas minha mãe não acreditou em mim, disse que a culpa era minha, porque eu era muito oferecida’. Chorei junto com ela,” conta.



Fotos: Thaís Mallon

Duas meninas


O escritor às vezes pensa que escreveu Leila na tentativa de fazer uma viagem no tempo, voltar ao passado e entregar o livro para a menina da escola pública da Grande Porto Alegre que inspirou a história, antes que acontecesse o que de ruim aconteceu com ela. Para que ao ler o livro a menina de alguma forma se protegesse, buscasse ajuda, evitasse o provável abuso que marcou seus poucos anos de vida. Mas o escritor sabe que a literatura pode muito, mas não pode voltar no tempo. 


E ele então se entristece, mas aí se lembra de uma outra menina, essa de São Paulo, de apenas 6 anos de idade, cuja mãe, dias depois de ler o livro para a filha, perguntou o que ela quer ser quando crescer. E a menina então ergueu o braço, do mesmo jeito que no livro a pequena baleia ergue a nadadeira, e gritou: 


– Eu quero ser livre que nem a Leilaaaaa!!!!!




 
 
 

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