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Rir é resistir

Atualizado: 28 de jul.

(revista Traços, nº 30 / novembro-dezembro de 2018)


Por José Rezende Jr.

Fotos: Bento Viana / @bentoviana



O ator, diretor e palhaço Zé Regino, que fez do teatro sua trincheira contra a ditadura, tem uma receita de sobrevivência para os dias sombrios: arte, temperada com muito humor.



Revista Traços nº 30

“Cantar nunca foi só de alegria.

Com tempo ruim, todo mundo também dá bom dia”

(Gonzaguinha)


Com apenas 19 anos de idade, o estudante e aprendiz de ator José Regino de Oliveira já havia perdido cinco amigos para o suicídio. “A ditadura trouxe com ela um ar muito denso, pesado, difícil de respirar. Era um tempo sem liberdades e sem perspectivas. Muitos não sobreviveram. Fui salvo pelo teatro. Ele me deu espaço para respirar.”


Fundador do grupo Celeiro das Antas, o ator, diretor, pesquisador, arte-educador e palhaço Zé Regino consolidou-se como um dos principais nomes da cena teatral brasiliense. Mas, segundo ele, sua primeira tentativa de fazer teatro foi uma tragédia. (ou uma comédia que virou tragédia.) (ou uma tragédia que virou comédia). (uma tragicomédia, enfim.)


Foi assim: um dia, o grupo de jovens da igreja católica que ele frequentava, em Taguatinga, fez audição para escolha do elenco de uma nova peça.  E lá estava Zé Regino, no auge da adolescência, sem qualquer experiência com o teatro, tentando conquistar um lugar à luz dos refletores. Para impressionar a banca de seleção, escolheu um texto tristíssimo, desses de cortar os pulsos com lâmina cega. Não lembra o título do poema, mas sabe que era de Neimar de Barros e falava de uma jovem violentada. 


“Eu queria que todo mundo chorasse”, ele conta, rindo. O efeito foi o oposto: “Quando dei por mim, a banca inteira estava segurando o riso. Até que não conseguiram mais segurar e caíram todos na gargalhada. Fui embora daquela audição completamente arrasado, com uma certeza: o teatro não era pra mim.”


Levaria ainda algum tempo para se convencer que o teatro era, sim, para ele. E mais: que o seu lugar era a comédia. 


Militante do movimento estudantil durante a resistência à ditadura, Zé Regino aproximou-se do grupo de teatro amador do qual o irmão fazia parte com a clandestina missão de cooptar jovens atores para a política. O efeito foi, de novo, o oposto: o militante infiltrado é que acabou para sempre cooptado pelo teatro, embora sem perder jamais a militância – na vida e nos palcos. Até porque, como ele faz questão de lembrar: 


“Toda arte é política, porque busca um sentido para a vida. E quando você busca sentido, em vez de simplesmente ser levado pela vida, você está fazendo política”. 


 

CULTURA POPULAR


Depois da tragicomédia inicial no grupo de jovens quando adolescente, os primeiros passos pra valer foram dados no Retalhos, histórico grupo de teatro amador de Taguatinga, que tinha entre os integrantes o bonequeiro Chico Simões e o mímico Miqueias Paz. Zé Regino foi aprendendo o ofício na prática, nos palcos e sobretudo nas apresentações de rua. Os festivais pelo país afora, com as oficinas e o convívio com artistas experientes, também foram fundamentais para sua formação. 


Ainda nos anos 80, apaixonou-se pelo teatro de bonecos e bebeu da sabedoria de grandes mestres do mamulengo, a exemplo de Solón, Saúba e Carlinhos Babau. Morou seis meses em Olinda, trabalhando com o Mamulengo Só-Riso, grupo referência da cultura popular nordestina. Um dia, na casa de mestre Solón, em Carpina, interior de Pernambuco, recebeu uma lição que carrega até hoje. Disse o mestre Solón (que morreria pouco tempo depois, vítima de atropelamento justo numa passagem por Brasília):


– Vai que um dia você acorda, está sem dinheiro e precisando muito. Você vai colocar seu boneco na empanada, e ele vai dizer que tá sem dinheiro, a brincadeira dele vai ser sobre a falta do dinheiro e a necessidade que ele tá passando. Mas olhe! Quem vai dizer que está sem dinheiro é o boneco, não é você, entende? É ele quem tá precisando, ninguém vai saber que é você quem tá necessitado. O povo vai rir é do seu boneco. Tem coisa que acontece com o indivíduo que é cruel, mas na boca dos bonecos, o povo faz é rir.


Moral da história, ensinada pelo mestre Solón e aprendida pelo discípulo Zé Regino: Rir (e fazer rir), até da própria dor e do próprio ridículo, é o melhor remédio. 


Fotos: Bento Viana


FREUD EXPLICA


Da prática à teoria: de volta a Brasília, Zé Regino foi estudar artes cênicas na Faculdade Dulcina de Moraes. Com o professor, ator, diretor e palhaço Carlos Tamanini, aprendeu a pensar o teatro. Também com Tamanini, iniciou-se nos estudos da arte da palhaçaria. Aprendeu a saltar, virar cambalhota, cair de pequenas e grandes alturas, dar e receber bofetadas, abrir e fechar portas inexistentes, carregar pesos imaginários. 


“Tudo tinha de ser feito com muita verdade e eficiência. Nas aulas do curso de palhaços éramos levados a superar os nossos limites, a realizar coisas que julgávamos impossíveis de serem feitas com os nossos corpos”, Zé Regino escreveria mais tarde, na dissertação de mestrado O Desempenho do Ator na Construção do Riso – A dramaturgia de uma encenação cômica, que defendeu em 2008, na UnB. 


Sim, para Zé Regino o riso é tão sério que precisa ser estudado a fundo. E ele estudou: da Grécia antiga à palhaçaria contemporânea, passando pelos bobos da corte – “os únicos que podiam criticar o rei sem o risco de perder a cabeça” – e por pensadores ilustres como Sigmund Freud. Conclusão, resumida para os leigos: 

“O riso é de fato uma espécie de remédio, joga uma quantidade enorme de hormônio no seu corpo. O humor faz bem pra saúde, qualquer tipo de humor, porque o cérebro não faz distinção: você ri até de coisas com as quais não concorda. Mas quando vem acompanhado de inteligência e de espírito crítico, o humor se torna um remédio melhor ainda”, prescreve Zé Regino. 


Fotos: Bento Viana


PATRIMÔNIO CULTURAL


O Celeiro das Antas foi fundado em 1991 e ao longo de quase três décadas, com idas e vindas e diferentes formações, se tornaria um patrimônio cultural brasiliense. Zambelê, o palhaço de Zé Regino, nasceu mais ou menos na mesma época. O curioso é que esse mineiro de Corinto, que veio para Brasília ainda criança, padecia de uma timidez atroz (e ainda padece, ele jura, mesmo que não pareça), além de ser o menos engraçado dos seus 11 irmãos. 


“Eu contava piada e ninguém ria. Em compensação, as pessoas riam de coisas que eu fazia a sério. Me achavam engraçado quando eu queria fazer chorar. Quando comecei no teatro, ainda que as peças fossem dramáticas, todos os papéis que me davam tinham uma pegada cômica. Acho que até pelo meu biótipo, né? Com essa cara, não dava mesmo pra ser galã”, brinca.


As duas faces do artista, a dramática e a cômica, sempre conviveram sem crises pessoais de identidade. Nem julgamentos alheios. Até que o Celeiro das Antas entrou em evidência com o sucesso de Moby Dick, adaptação do clássico de Herman Melville encenada pela primeira vez em 1993, na sede da companhia, em Taguatinga. 


Quando o proprietário pediu a devolução do imóvel alugado pelo grupo, o Celeiro das Antas se viu no olho da rua. A solução, radical, foi ocupar o lendário Teatro da Praça, que nos anos 80 havia sido ponto de efervescência cultural da cidade, mas naquele momento estava caindo aos pedaços – literalmente aos pedaços. O teto ameaçava desabar a qualquer momento, tornando inviável a realização de qualquer espetáculo por conta do risco para artistas e plateia. A rebeldia do grupo ganhou as páginas dos jornais, serviu de alerta para o descaso do poder público para com a arte e colocou o Celeiro das Antas ainda mais em evidência.


E tanta evidência acabou complicando a relação entre o dramático e o cômico na vida de Zé Regino. Tudo porque ele aceitou o convite para fazer o hilariante papel de um mordomo (que era suspeito de um crime e no final se revelava o verdadeiro culpado) na comédia Aaahhh!, do grupo A culpa é da mãe (hoje Os Melhores do Mundo). O palhaço Zambelê, de cara pintada, era bem aceito pelo meio artístico dito “sério”. Mas o respeitável José Regino, do respeitabilíssimo Celeiro das Antas, fazendo humor com nome, sobrenome e cara limpa... aí já era outra história.


“Teve um dia que eu cheguei numa reunião do Celeiro e o grupo estava votando a minha expulsão. Na mesma época, andando pelo Conjunto Nacional, um sujeito que eu nunca vi na vida me deu o maior esporro, aos gritos, dizendo que eu não tinha o direito, que eu não podia fazer aquilo.” 


“Aquilo” era simplesmente isto: fazer rir. O preconceito para com o humor, mesmo quando vindo do próprio meio teatral, não abalou Zé Regino. Pelo contrário: o palhaço Zambelê está mais vivo e engraçado do que nunca no espetáculo solo Saída de Emergência


E a terceira geração do Celeiro das Antas (formada por Elisa Carneiro, Kelly Costa, Felix Saab e Rodrigo Lelis) assumiu de vez o perfil de companhia de comédia, levando muito a sério o ofício de fazer rir com inteligência e espírito crítico. É o que atesta a mais recente ousadia da trupe, o clássico shakespeariano Sonho de uma noite de verão, na qual os quatro atores, sob direção de Zé Regino, se desdobram em duas dezenas de personagens, num belo exemplar do chamado “teatro físico” (no qual o corpo do ator é o eixo central da representação). 


O HUMOR NOS TEMPOS DO ÓDIO


Amador ou não, o anárquico Retalhos não escapava da feroz repressão à arte e à cultura promovida pela ditadura militar e civil implantada em 1964. O grupo era obrigado a ensaiar seus textos na presença de um censor todo poderoso, que dava ordens aos artistas: 


– Esse diálogo não pode. Tem que cortar essa cena.


“A gente até cortava, mas só no ensaio”, lembra Zé Regino. “No dia mesmo da apresentação, o texto ia na íntegra. Porque o humor é assim: ele sempre encontra um jeito de burlar a censura e zombar dos poderosos.” 


Zé Regino/Zambelê não sabe como o humor será recebido pelos novos poderosos do governo Bolsonaro. Mas já antecipa:


“O humor é transgressor. Por isso os conservadores não o suportam, a menos que seja aquele tipo de humor que não muda nada, que preserva o status quo, que só reforça o machismo, a homofobia e outras formas de preconceito. Quando feito com inteligência e espírito crítico, ele quebra o senso de realidade, tira do lugar comum, faz rir do próprio ridículo. A função do humor é mudar o que está estabelecido. Por isso o riso foi tão importante na resistência à ditadura, e sempre será.”


De volta ao princípio: Rir é o melhor remédio. Mesmo com tempo ruim.



 
 
 

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