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Teatro para os sem teatro

Atualizado: 30 de jul.

(revista Traços nº 42 / agosto de 2020)


Por José Rezende Jr. Fotos: Bento Viana/ @bentoviana


Seja em assentamentos da Reforma Agrária ou estações de metrô, em praças públicas, escolas ou feiras livres, debaixo de sol ou de chuva, a Cia Burlesca vai aonde o público está, resgatando a cultura popular em peças de forte conteúdo político 





ATO I: 

RECONHECIMENTO


PERSONAGENS


Mafá Nogueira

Lyvian Sena

Julie Wetzel

Pedro Caroca

Pedro Henrick

Patrícia Barros

Vendedora de panos de prato

Adolescente no assentamento do MST


CENA I


Proximidades da Feira do Paranoá. Elenco da Cia Burlesca dentro do carro, a caminho da Feira do Paranoá, para apresentação da peça Quixote ao Avesso. O carro para no sinal vermelho e uma senhora que vende panos de prato se aproxima para abordar os passageiros.


VENDEDORA DE PANOS DE PRATO – Eita! Eu conheço vocês! Vocês são da Burlesca, se apresentaram semana passada na minha escola, no EJA [Educação de Jovens e Adultos]! 


CENA II 


Assentamento Canaã, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em Brazlândia. Elenco da Cia. Burlesca chega ao assentamento para apresentação da peça O Longe. Um adolescente, ex-interno do sistema socioeducativo, que estava visitando a tia no assentamento, aborda o elenco.


ADOLESCENTE NO ASSENTAMENTO – Eu conheço vocês! Vocês são da Burlesca, montaram uma peça de teatro com a gente lá na Unidade de Internação de São Sebastião!


CENA III


Videoconferência da Cia Burlesca com a Traços, via aplicativo Zoom. A atriz Lyvian Sena conta a história da vendedora de panos de prato da Feira do Paranoá (cena I) e a do adolescente do assentamento do MST (Cena II) e conclui, emocionada:


LYVIAN SENA – Esse é o nosso público. É quem reconhece a gente na rua.






O HABITAT INUSITADO


Se alguém perguntar aos integrantes da Cia Burlesca de Teatro qual o local mais inusitado em que já se apresentaram, a resposta virá em coro: “num teatro”. Sim, pois no mundo ao avesso da Burlesca teatro é exceção. Palco, coxia, plateia? Ixi, muito raramente – e bota raramente nisso. Camarim, então... 


A regra da companhia é fugir à regra, e se apresentar em assentamentos e acampamentos do MST e em unidades de internação de jovens em conflito com a lei, como a de São Sebastião, onde a companhia passou quatro meses ministrando oficinas e ajudando os internos a montarem a própria peça – para tempos depois serem reconhecidos pelo adolescente que visitava a tia no assentamento do MST. 


Estações de metrô, feiras livres, comunidades quilombolas, salas de aula, pátios de escola, bibliotecas, igrejas, ruas, praças e bares de beira de estrada também fazem parte do mais que alternativo circuito da Cia Burlesca.  


“Para as outras companhias de teatro esses seriam locais inusitados. Para nós, não. Esse é o nosso habitat”, afirma o ator e diretor Mafá Nogueira.


A proposta da Burlesca é levar o teatro para quem não tem teatro. E isso inclui apresentações e oficinas tanto em escolas públicas, via financiamentos do FAC, quanto em comunidades remotas onde se chega em boleia de caminhão, depois de percorrer quilômetros e quilômetros por estradas de terra, para encenar histórias em troca de pouso e comida.


“Nossa ideia de formação de público não é apenas ir às escolas para tentar despertar o gosto das crianças e adolescentes pelo teatro. É também levar o teatro para quem não tem o costume, nem o acesso, nem as condições materiais para frequentar um teatro. Nós vamos o mais próximo possível de onde as pessoas estão”, explica Mafá. 






TÃO LONGE, TÃO PERTO


Ir o mais próximo possível de onde as pessoas estão, às vezes, significa praticamente entrar onde as pessoas vivem, como no caso da moradora do assentamento do MST que viu o quintal de seu barraco transformado em teatro improvisado. Aconteceu durante o projeto de circulação pelas comunidades rurais da peça O Longe, inspirada num conto da escritora sul-africana Nadine Gordimer. Ao chegar no acampamento, a trupe constatou que não havia local disponível para a apresentação. (Não estamos falando de um teatro, é claro, mas de pelo menos um barraco comunitário onde encenar a peça.) 


Logo, no entanto, a magia do teatro se fez presente, com a ajuda das mãos calejadas de mulheres e homens sem terra que, em regime de mutirão, produziram a comida para alimentar a trupe exausta e faminta e ajudaram a montar o cenário. Porque sem terra sim, por conta de uma estrutura agrária injusta, mas sem teatro não, pelo menos essa noite não. Essa noite é a hora e a vez de descansar da lida diária de sol a sol e se transportar para longe, muito longe, para dentro da história dessa avó e dessa neta refugiadas de guerra – ambas, portanto, sem terra, que nem o público aglomerado no quintal que virou um improvável teatro. Tão longe, tão perto.


FESTA NO CÉU


Mas a Burlesca não precisa ir tão longe para emocionar o seu público, esse que a reconhece na rua. Houve uma vez uma apresentação da versão em cordel de Festa no Céu no antigo centro de internação para adolescentes em conflito com a lei, o Caje, na Asa Norte, que entrou para a história afetiva da companhia. 


A peça, voltada para o público infantil, não parecia triste o bastante para arrancar lágrimas de jovens e adultos, a menos que se considere como tragédia o fato de um pobre sapo não ser convidado para a festa no céu. Mas era dia de visita, havia pais, mães, avôs e avós dos internos ali presentes, e, durante a contação da história, Mafá Nogueira (o urubu) e Lyvian Sena (o sapo) depararam-se com adolescentes e adultos emocionados – especialmente um senhor que não parava de chorar. 


“Ele não chorava pela peça, que não tinha nada de tão emocionante, mas pelo simples fato de estar assistindo a uma peça de teatro, coisa que nunca tinha feito na vida”, conta Mafá. “Ele chorava pelo respeito que estava recebendo num ambiente como aquele, pela dedicação de artistas que foram até lá fazer teatro pra ele, naquela situação na qual ele estava: pai de adolescente que cometeu um ato infracional vai visitar o filho na cadeia, e de repente, num momento em que se encontra tão fragilizado, sofrendo violência institucional de todos os lados, ele é presenteado com o teatro.”






TODO TEATRO É POLÍTICO

(MESMO QUE NÃO QUEIRA)


Quando nasceu, em 2004, em São Paulo, a Burlesca era uma companhia de uma pessoa só. Até que em 2008 o ator, diretor, músico e palhaço Mafá Nogueira veio morar em Brasília. Aqui, a Burlesca encorpou, ganhou outros integrantes e trocou a palhaçaria da fase inicial pelo teatro político. Passou a beber na fonte do teatro épico de Bertolt Brecht e do teatro do oprimido de Augusto Boal. 


“Todo teatro é político, inclusive aquele aliado à indústria cultural, justamente porque está a serviço da indústria cultural”, pondera a atriz Lyvian Sena. “A necessidade que a gente tem de se colocar como teatro político é pra demarcar o nosso território: com quem a gente trabalha, com o quê a gente trabalha, por onde a gente circula, a quem a gente se alia, quais são nossas referências estéticas e políticas. Estamos vinculados à pauta dos movimentos sociais, da população excluída das salas de teatro.” 


O ator Pedro Caroca acrescenta por que a companhia nunca fez teatro comercial:


“A gente sempre buscou acessar o público que normalmente não é alcançado: estudantes em pátios de escolas públicas, agricultores assentados em áreas da reforma agrária, trabalhadores da cidade em feiras, praças, ruas. São nesses espaços que o diálogo acontece, que os textos fazem sentido e o fazer teatral é ferramenta de luta”, defende.


Mas assumir um lado na disputa política não significa abrir mão da arte e abraçar o panfleto, como ressalva Mafá. 


“Nós aprendemos a ter lado e mesmo assim nos mantermos artisticamente, sem cair no panfleto, no discurso simplesmente político. A partir daí fomos aos poucos matando nossa autocensura. A televisão, a escola, o Estado, tá todo mundo defendendo um lado, e a gente tá defendendo o outro. Se ficarmos quietos, só o discurso do opressor fica valendo.”


A FUGA PARA DENTRO


Encenar e ensinar: este parece ser a palavra de ordem da Burlesca, que dedica parte considerável do tempo às oficinas, ministradas em espaços como escolas públicas e assentamentos e acampamentos do MST. 


“Queremos socializar os meios de produção”, resume Lyvian. “E as pessoas querem fazer arte. Por conta da opressão do mercado de trabalho, do sistema capitalista, elas mexem muito pouco o corpo, têm pouco contato com a arte. Nas oficinas, elas podem trabalhar com a esfera dos sentidos, ter acesso a relações mais afetivas, se entender e entender o outro. A gente vem de um processo de muita carência de humano, de contato, de afeto, desse olhar para si e para o outro mediado pela arte. É muito isso que a gente busca.”


Mafá lembra os quatro meses de ocupação artística na Unidade de Internação de São Sebastião, quando a Burlesca encenou seu repertório para os internos, ministrou oficinas e, no final, ajudou os adolescentes a montarem a própria peça – e a fugirem para dentro de si mesmos, num processo de autorreflexão deflagrado pela arte.


“No começo eles não queriam fazer oficina de teatro. Iam pra lá pensando: ‘ah, massa, alguma coisa pra eu fazer aqui’. Mas a partir do momento que começaram a entender o que eram capazes de fazer com o teatro, aonde eles poderiam chegar e onde eles poderiam colocar as emoções e os pensamentos que estavam presos entre quatro paredes, pra daí ganharem o mundo, os resultados foram maravilhosos. Havia naqueles adolescentes um enorme prazer em fazer as cenas, e de poder criar para além da mesmice de todos os dias. Havia uma vontade, uma vontade desesperada de fazer teatro.”


Só que, na maioria das vezes, a vontade desesperada de fazer teatro acaba sufocada pelo sistema político e econômico contra o qual a Burlesca se insurge com as armas da arte. Mas às vezes dá certo, como no caso da peça A Princesa Sisuda, que nasceu dentro do Caje, com a participação dos meninos da Orquestra Plena Harmonia, projeto de Mafá paralelo à Burlesca. 


Com o apoio do FAC, A Princesa Sisuda circulou por 15 bibliotecas públicas do DF. Por 15 vezes, os meninos músicos saíram de suas clausuras para tocar violino em bibliotecas nas quais eles provavelmente jamais haviam pisado. “Uma vez a mãe de um dos meninos foi ver o filho tocar. E ela foi toda bonita, com uma roupa nova. Foi emocionante”, conta Lyvian. 


Mafá lembra com carinho a história de dois internos do Caje que integraram a orquestra Plena Harmonia e seguiram adiante. Foram até contratados, com salário e tudo, para ajudar a compor a trilha musical do espetáculo Bendita Dica.  


Um desses meninos, que se chama David Pedroza, passou no Enem quando ainda estava no Caje, foi estudar Direito e hoje, aos 26 anos, é dono de um restaurante e de um curso de inglês. 


“A arte foi muito importante na minha vida, porque eu estava enclausurado, dentro de uma cela sem fazer nada, com uma explosão de sentimentos dentro de mim, querendo compartilhar com as outras pessoas tudo o que eu podia fazer”, conta David. “E a Burlesca ajudou a reacender em mim a chama do amor, porque eu havia sido baleado pelos meus próprios amigos, havia perdido a capacidade de confiar nas pessoas. E de repente me vi cercado de pessoas que confiavam em mim: o Mafá, a Lyvian, a Julie, o Caroca... Pessoas que sabiam que eu estive preso e que mesmo assim nunca me discriminaram. Isso foi fundamental para a minha reinserção na sociedade.”





ÚLTIMO ATO: 

COMUNHÃO


Mesmo fora do circuito tradicional de teatro, a Cia Burlesca conquistou em 2018 a mais importante premiação do DF, o Prêmio Sesc do Teatro Candango, na categoria Melhor Espetáculo Infantil, com a montagem Bendita Dica. A peça é inspirada na vida da líder comunitária e espiritual goiana Benedita Cipriano Gomes, a Santa Dica, que nos anos 20 do século passado desafiou o machismo e o coronelismo e fundou em Lagolândia, distrito de Pirenópolis, uma comunidade baseada na solidariedade e na coletividade. 


O prêmio do Sesc é motivo de orgulho. Mas a trajetória da Cia Burlesca é toda feita de pequenos prêmios diários – ou grandes, muito grandes, dependendo do ponto de vista. Como, por exemplo, o prêmio de apresentar Santa Dica num acampamento do MST e, na cena final, ouvir o público inteiro entoando junto o hino de amor à terra que nunca tocou no rádio, muito menos na televisão, mas cujos versos já circulam de boca em boca, de acampamento em assentamento por aí afora.


“Nessas horas, a palavra que me vem à mente é: comunhão”, diz a atriz Julie Wetzel. “É a sensação mística de que nós e aquele público falamos a mesma língua, queremos o mesmo objetivo, vibramos na mesma frequência. Estamos juntos, plantando sementes, trocando saberes e lutas.”


E assim chegamos à cena final, com a Cia Burlesca e o público cantando juntos: 


Toda terra é de Deus

Ergue a cerca o patrão

Todos juntos cultivamos

Defenderemos esse chão.


Toda terra é do povo

Tua lei não vale nada

Com igualdade e comunhão

Defenderemos nossa morada.




 

 
 
 

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