A RODOVIÁRIA – UM LUGAR NO MUNDO
- joserezendejr
- 26 de fev.
- 18 min de leitura
Atualizado: 28 de jul.
Do livro “Brasília, 50 anos - Que cidade é essa?”, abril de 2010 Por José Rezende Jr. Fotos: Ricardo Labastier / @ricardolabastier
Setecentos mil almas circulam todos os dias pela Rodoviária de Brasília, esse entroncamento de destinos e eixos, criado à imagem e semelhança de tantos outros lugares no mundo, onde multidões de seres humanos se encontram e se perdem, entre o sonho e a lida.
“Brasília é artificial. Tão artificial como devia ter sido o mundo quando foi criado”
(Clarice Lispector, escritora)
“A Rodoviária não é o melhor lugar do mundo, mas também não é o pior. É só um lugar no mundo”
(Galego, engraxate, que há 34 anos lustra sapatos neste mesmo lugar no mundo)

Gênesis e Êxodo
No princípio, eram a poeira e a solidão. Até que o Criador traçou no vazio do papel em branco dois eixos que se cruzavam. Em seguida, determinou que os homens desenhassem no chão de terra uma enorme cruz – e os homens, então, sangraram sem dó o cerrado, a golpes de trator.
Por fim, o Criador apontou o local exato onde os dois eixos se cruzavam e ordenou que ali se fizesse a Rodoviária. E a Rodoviária se fez, artificial e imperfeita como o mundo.
E os candangos (os que vieram no início), e os brasilienses (os que nasceram depois), cresceram e se multiplicaram tanto que hoje, meio século depois, 700 mil deles circulam todos os dias por este entroncamento de destinos e eixos, criado à imagem e semelhança de tantos outros lugares no mundo onde multidões de seres humanos se encontram e se perdem, entre o sonho e a lida.
Vamos começar falando de um desses seres humanos, este que a mãe escolheu chamar de Luiz Carlos mas o mundo batizou de Galego. E já que nos inspiramos na Bíblia, lembremos que a história de Galego – vejam só – tem início na Palestina, a terra santa de onde a bisavó migrou para Xique-Xique (Bahia).
Lá, uma das filhas dessa bisavó (que viria a ser avó de Galego), casou-se às escondidas com um negro. “Um negão baiano”, frisa Galego, que de tão branco fez por merecer o apelido. Discriminada pela mãe, a avó de Galego migrou de Xique-Xique para Paracatu (Minas Gerais). Uma das filhas dessa avó (que no futuro seria mãe de Galego), por sua vez, migrou de Paracatu para Santos (São Paulo), com o objetivo de estudar e ao mesmo tempo fugir do casamento, imposto pela mãe, com um velho português.
Galego nasceu em Santos e logo, cumprindo a sina familiar, migrou para Brasília. Aos 7 anos, contra a vontade da mãe, decidiu que queria engraxar sapatos na Rodoviária. Hoje, aos 41, faz o que sempre fez: engraxa sapatos na Rodoviária, ainda contra a vontade da mãe.
Sentado em sua cadeira de engraxate, Galego vê chegando e partindo 2 mil e 300 ônibus que ligam Brasília às cidades do DF e do Entorno. Assiste também ao vai e vem de milhares de almas famintas que diariamente devoram 9 mil pastéis da Viçosa, a pastelaria mais tradicional da cidade. (Mas isso só até o dia 15: depois que o mês devora o salário da freguesia, as vendas diárias caem para “apenas” 6 mil pasteis).
A Rodoviária e o Mundo
Entre 28 de novembro de 1958 e 11 de setembro de 1960, homens e máquinas fizeram das engrenagens e tripas, coração: a obra mais cara dos primórdios de Brasília tinha que ficar pronta a tempo do aniversário de Juscelino Kubitschek. E ficou. Em 12 de setembro de 1960, JK comemorou 58 anos inaugurando a Rodoviária.
No discurso de inauguração, o presidente primeiro agradeceu a Israel Pinheiro, presidente da Novacap, empresa pública que construiu Brasília em tempo recorde.
“Meu caro Israel, acelerando a conclusão de importantes obras a fim de inaugurá-las no dia de hoje, trouxestes ao companheiro de luta o mais belo e cobiçado presente de aniversário. Com ímpeto, retomastes o já famoso ‘ritmo de Brasília’, e, dobrando esforços, arrancastes à noite horas reservadas ao descanso.”
Em seguida, homenageou os candangos, “homens que vi debruçados no trabalho pelas madrugadas afora, cantando para espantar o sono e não interromper o serviço que eles sabiam necessário ao desenvolvimento do Brasil”.
E profetizou: “Em torno desta magnífica plataforma não tardará a instalar-se um centro borbulhante de vida, com as suas instituições de cultura, as suas salas de espetáculos, as suas lojas, as suas galerias, as suas vielas de porte veneziano, seus trevos, terraços e cafés, onde se encontrará o ambiente propício à vida em comum, o lugar de encontro, o convívio tão necessário ao citadino”.
Marco da engenharia pátria, saudada pela imprensa da época, a Rodoviária envelheceu mal. Em meio século de vida, sofreu e fez sofrer com infiltrações, goteiras, rachaduras, falhas estruturais, necessidade permanente de reformas.
Era previsível: igualmente construído às pressas, o Mundo também acumula defeitos, muitos deles provocados pelo Homem – esta criatura fabricada num único dia e até hoje saudada como obra-prima da engenharia divina – que, no entanto…
É o preço que às vezes se paga pelas obras feitas assim tão às pressas.
(PS: E se as vielas de porte veneziano imaginadas por JK ainda estão por vir, pelo menos numa coisa o presidente bossa-nova acertou em cheio: na Rodoviária, a vida borbulha.)

Raízes do Brasil
Trinta anos depois, Lucio Costa, O Criador, visitou a Rodoviária, nascida no cruzamento dos dois eixos que desenhara no vazio do papel em branco. Emocionou-se com tantas vidas em movimento, matéria-prima escassa em boa parte desta cidade inventada. Assim falou o inventor, urbanista com coração de poeta:
“Eu sempre repeti que essa plataforma rodoviária era o traço de união da metrópole, da capital, com as cidades-satélite improvisadas da periferia. Então eu senti esse movimento, essa vida intensa dos verdadeiros brasilienses, essa massa que vive fora e converge para a Rodoviária. Ali é a casa deles, é o lugar onde eles se sentem à vontade. Então eu vi que Brasília tem raízes brasileiras, reais, não é uma flor de estufa como poderia ser. Na verdade, o sonho foi menor que a realidade. A realidade foi maior, mais bela.”
Memórias da fome e do sono
Em 1958, sêo Pernambuco tomou o pau-de-arara em Pernambuco para construir Brasília. O apelido ficou, mas sêo Pernambuco nunca mais voltou a Pernambuco. “Não quero. Minha terra, pra mim, tem o gosto da fome que eu passei”, relembra, enquanto assiste à apresentação de moços e moças vestidos de Lampião e Maria Bonita que dançam quadrilha na plataforma inferior da Rodoviária, por ocasião da festa junina.
Na Brasília em construção, sêo Pernambuco cavou galerias subterrâneas, por onde no futuro escorreriam os esgotos da nova capital.
“Vi companheiros morrendo na minha frente, espetados em barras de ferro, atropelados pelos tratores, despencados do alto dos prédios, tontos de sono porque viravam noites e noites trabalhando. E mal o trabalhador morria, jogavam o concreto em cima do corpo e continuavam a obra. Não dava tempo de fazer enterro, Brasília tinha que ficar pronta. Nem sei como sobrevivi.”
Sêo Pernambuco é, portanto, um dos heróis candangos homenageados pelo presidente Juscelino Kubitschek no discurso de inauguração da Rodoviária. Um dos milhares de homens “debruçados no trabalho pelas madrugadas afora, cantando para espantar o sono e não interromper o serviço que eles sabiam necessário ao desenvolvimento do Brasil”.
Apesar do sofrimento inicial, sêo Pernambuco aprendeu a amar a cidade urgente que quase lhe tirou a vida. Aposentado da Caesb, mora em casa própria, em Águas Lindas (Goiás).
“Casa boa, com cerâmica Gyotoku”, frisa o candango, com o orgulho dos sobreviventes.
O sonho e a lida
“Foi iniciada em 28 de novembro de 1958 e inaugurada pelo presidente Juscelino Kubitschek em 12 de setembro de 1960, como estuário em que palpitará a vida de Brasília na sua expressão de progresso, grandeza e fôrça pioneira a serviço do Brasil”, exalta a placa de bronze, colada no mármore num tempo em que “força” tinha acento e era preciso, a qualquer preço, fazer 50 anos caberem em 5.
Ao lado dessa placa, entre o primeiro andar e o mezanino, existe outra, com data de 22 de dezembro de 1998, relembrando a primeira grande reforma da Rodoviária. A placa assinada pelo então governador Cristovam Buarque comunica aos que descem a escada rolante:
“Nesta estação rodoviária passam todos os caminhos de Brasília, como imaginou Lucio Costa. Aqui se encontram todos os seus cidadãos, na lida diária e na busca dos sonhos que nos alimentam”.
Mas poucos dos 700 mil transeuntes diários têm tempo de ler as duas placas, ocupados que estão entre o sonho e a lida.

Até que a morte
O velhinho e a velhinha se amam há 30 anos, mas sabem que nenhum amor é para sempre. E por não ser eterno o amor, o velhinho e a velhinha se amarão só até a morte.
“Depois que a gente morre não tem mais jeito de continuar se amando”, resigna-se a velhinha. O velhinho concorda com um sorriso de poucos dentes. Ela veio de São Paulo, ele do Paraná, e foi em Brasília que os dois se gostaram.
Juntos enquanto vivos, o velhinho e a velhinha pedem esmola de braços dados. O velhinho, a bem da verdade, estende a mão, mas não abre a boca porque sente vergonha. Quem pede é a velhinha.
Uns dez anos mais velha que o velhinho, a velhinha acumula tarefas. Penteia o cabelo do velhinho com as pontas dos dedos, ajeita-lhe a gola que insiste em sair do prumo e, na falta de ferro elétrico, passa as palmas das mãos calejadas sobre o peito e a camisa do companheiro. E quando saem da Rodoviária e o sol ainda vai alto, é ela quem empunha a sombrinha xadrez e gigante.
E lá se vão o velhinho e a velhinha, de braços dados, dois namorados.
A vida em alumínio
Sêo Manoel cata latinhas, mas não foi para isso que veio de Minas. Chegou para trabalhar na construção civil, quando Brasília “ainda era uma pelotinha, só cerrado e poeira”, lembra, olhando os prédios em volta da Rodoviária.
O candango Manoel teve sete filhos brasilienses. Seis são motoristas de ônibus – inclusive a filha, que dirige um zebrinha (micro-ônibus cor de laranja com listras pretas que circula entre as quadras da cidade).
Os seis, e mais a outra irmã que se casou e não quis saber do transporte coletivo, aprenderam a dirigir quando crianças, ao volante da caminhonete de seu Manoel.
Sim, sêo Manoel já possuiu caminhonete, com a qual puxava lenha para alimentar as olarias. Perdeu a caminhonete pelo caminho, porque a vida é assim, ora a gente ganha, ora a gente perde. Antes, possuiu carroça de animal, para carregar papelão. “Mas me tomaram, a carroça e o animal.”
Hoje, sêo Manoel anda de a pé, catando latinha nas plataformas onde os filhos estacionam ônibus.
Apesar de tudo, acha que venceu na vida. Estudou os filhos e nenhum deles precisa catar latinhas -- meio de sobrevivência do qual se envergonha um pouco, embora o considere mais digno do que pedir esmola, que por sua vez é mais digno do que roubar.
Na verdade, sêo Manoel talvez não precisasse catar latinha, poderia contar com a generosidade dos filhos, mas não sabe viver sem arrancar o sustento com as próprias mãos. E se o sustento está no alumínio arrancado do lixo, é no lixo que ele enfia fundo as mãos e os braços até a altura dos cotovelos, a vergonha encoberta pelo ronco dos motores e as nuvens de monóxido de carbono.
A teoria da invisibilidade
Louca de álcool, crack ou solidão, a mulher se dirige aos pombos. Gesticula, balbucia, perde a paciência e grita, mas é inútil: os pombos não lhe dão ouvidos, ocupados em catar as migalhas no chão. As aves não são as únicas a ignorar o sermão proferido ao nada. Passarão hoje por aqui 700 mil pessoas, e ninguém ouvirá o Evangelho da Mulher Doida, apelido que ganhou dos transeuntes.
Passarão 700 mil pessoas, e ninguém verá o menino que dorme em frente à agência dos Correios, estirado sobre a cama feita de papelão, a cabeça recostada sobre a placa de isopor que lhe serve de travesseiro, a camiseta gigante e puída esticada para cima à guisa de lençol, protegendo os olhos do dia que já vai alto. Não se vê o rosto do menino. Não se vê sequer o menino, uma vez que se trata de um menino invisível.
São tantos os meninos dormindo abandonados que ninguém mais os vê: fazem parte da paisagem. Em algum momento o menino acordará e sua triste figura, apesar de franzina, ganhará de súbito ameaçadora visibilidade, e fará com que as mulheres segurem com mais força as alças das bolsas e os homens olhem de banda e apalpem o bolso traseiro de 15 em 15 segundos.
Mas agora o menino é só um menino, inofensivo e invisível, que dorme descalço porque alguém, talvez outro menino invisível, levou-lhe os chinelos velhos enquanto dormia.
Passarão 700 mil pessoas e ninguém verá a mulher que prega aos pombos, nem o menino que dorme descalço, nem este homem vencido pelo crack ou pelo cansaço que também dorme com o dia claro, a poucos metros da fumaça dos ônibus. O homem, no entanto, parece ainda mais pobre que o menino pobre, pois dorme com ainda menos conforto, sem cama de papelão nem travesseiro de isopor.
Indo ou vindo, 700 mil passageiros tropeçarão neste homem invisível como se ele não estivesse ali. Minto: uma alma generosa passou há pouco, viu o homem deitado ou caído sobre o cimento, estancou diante do corpo inerte e deixou-lhe ao alcance das mãos o folheto que o homem lerá quando acordar – caso tenha aprendido a ler antes de se tornar um desses tantos seres invisíveis da Rodoviária.
No folheto está escrito que Jesus voltará. Em breve.
O circo chinês das maravilhas
O cavalo baio galopa em círculo. De tanto girar em torno do mesmo eixo, o cavalo desenhou com os cascos um círculo no chão de cimento. Continuará o cavalo neste mesmo galope, nesta mesma órbita, até que as pilhas se acabem ou que o homem com cara de caboclo amazonense o agarre pelo pescoço e saia correndo, com um fiscal de colete preto em seu encalço.
Mas hoje é domingo, o ritmo dos fiscais não resiste à modorra dominical. Por isso, o homem com cara de caboclo amazonense vende brinquedos, enquanto outros tantos brasileiros e brasileiras mercadejam óculos, relógios, mel de abelha, bolsas, cds, dvds, peças íntimas, bijuterias.
Porque hoje é domingo, homens e mulheres andam livres pelas plataformas empurrando caixas de isopor sobre rodas. As caixas estão lotadas de cerveja, embora seja rigorosamente proibida a venda de bebidas alcoólicas.
Na contramão do pecado, a mulher que traz bordado no lado esquerdo do peito a identificação “Albenice cantora e compositora” vende seu próprio cd evangélico, “O Deus do Impossível”. O original custa R$ 15,00, mas Albenice oferece por R$ 5,00 uma versão... pirata. Albenice é, portanto, uma pirata de si.
Dia desses, Albenice teve toda a mercadoria apreendida pela fiscalização, feito fosse ela uma contraventora como qualquer outra -- uma pirata alheia. “Mas depois o fiscal voltou arrependido, pediu perdão e pagou meu almoço. Milagres acontecem”, conta, com fé.
Enquanto isso, o homem da cobra fala mais do que o homem da cobra para a pequena e atenta multidão. Como todo bom homem da cobra, este não possui cobra alguma, a cobra é apenas um perigo constante e inexistente que o homem ameaça tirar da mala a qualquer instante, mas não tira.
O homem mantém a plateia em suspense com a promessa de atravessar num salto mortal o pequeno aro cheio de facas afiadas. O salto da morte é o grand finale, por isso o homem enrola o respeitável público com números de mágica e muita conversa fiada.
Lá pelas tantas, abaixa-se diante de uma espectadora, enfia a mão por dentro da perna da calça jeans que ela veste e tchan tchan tchan tchan das imediações da canela da moça o homem tira uma calcinha fio dental vermelha! Óóóóóóóó!!! A plateia vem abaixo, aplaude com entusiasmo. A partner involuntária leva um susto, mas depois ri tanto que nem pede a calcinha de volta.
O homem da cobra jura ser parceiro dos índios e aproveita para vender a poção mágica que cura de câncer a falta de apetite, além de unha encravada, espinhela caída e outras mazelas. De quebra, a erva ainda possui “poderes agrodisíacos”, como informa a embalagem. E o homem da cobra fala tanto e tanto e tem tanta mas tanta lábia que consegue vender a poção indígena até para... um índio.
-- É de índio? – pergunta o índio, curtindo o Domingão da Rodoviária.
-- É de índio – garante o homem branco.
-- Ah, então é bom – aprova o índio, guardando a poção mágica no bolso da bermuda.
E porque hoje é domingo, o cavalo baio galopa em liberdade ao lado do gorila que dá cambalhotas, o cachorro de pelúcia que late e fica em pé sobre as patas traseiras, o helicóptero que gira as hélices e só falta voar, o coelhinho que anda aos pequenos saltos, a boneca que fala em língua estrangeira, o jipe maluco que corre, tromba, capota, levanta, sacode a poeira e dá voltas a esmo.
O homem com cara de caboclo amazonense rege o circo de maravilhas chinesas que encanta os passantes. O circo só não encanta quem mais precisa de circo: as crianças que perambulam pela Rodoviária em busca de esmola e comida. São crianças sem olhos para nada que não seja seu ofício. Talvez instruídas pelas mães que descansam enquanto os filhos pedem esmola e vendem chicletes, as crianças passam ao largo desse circo em miniatura provisoriamente instalado aos pés da escada rolante.
O pequeno Cleo, por exemplo, tem quatro anos e um vocabulário ainda menor. O que ele não tem é olhos para as pequenas maravilhas.
“Me dá um trocado, me dá um trocado, me dá um trocado”, repete, abraçando a caixa de sapato que tem na tampa uma fenda para atrair moedas e cédulas. Reparando bem, caso alguém reparasse bem, a caixa do menino tem o desenho de um cachorrinho feliz que dorme sobre uma nuvem, ao passo que o pequeno dono da caixa dorme mesmo é numa folha de papelão, no gramado em frente à Rodoviária.
Mesmo as almas mais generosas ignoram o cachorrinho dorminhoco na caixa da criança; por pouco, não ignoram a própria criança. Ninguém vê que as crianças invisíveis não podem ver os brinquedos. Pensam, as almas generosas, que fazem o bem introduzindo uma moeda na caixa de sapatos ou pagando um pastel e um caldo de cana, para alegria dos donos da Pastelaria Viçosa.
Nem desconfiam, as almas generosas, que os meninos e as meninas da Rodoviária têm fome também de infância.
A árvore do Bem e do Mal
Nos anos 70, eles eram uns 30 ou 40. Engraxavam sapatos, cheiravam cola, roubavam e fugiam da polícia. Uns viraram bandidos, outros pastores evangélicos; uns mataram, outros morreram; uns estão presos, outros venceram na vida. Um continua engraxando sapatos. Nunca mais cheirou cola, nunca mais precisou fugir da polícia. Virou cidadão. Mora em casa própria, lá em Planaltina de Goiás (Brasilinha), comprada há dois anos graças aos sapatos engraxados na Rodoviária e ao trabalho da mulher, diarista.
Aos 41 anos, Galego tem no tornozelo uma grande cicatriz, fruto de um corte profundo adquirido durante uma das muitas fugas da polícia, quando menino-engraxate. (Embriagado de cola, na hora não viu nem sentiu a pele rasgada e a poça de sangue.)
Tem também queimaduras de cigarro, lembranças da aplicação de uma das leis do bando: quem cheirasse cola demais e dormisse em excesso acordava com a pontada da brasa na sola dos pés. A punição era imposta pelo líder da gangue, um garoto tido como irrecuperável que contrariou as expectativas e as estatísticas e também sobreviveu, virou cidadão e hoje ganha a vida como técnico em refrigeração.
Galego não tem marcas das surras de palmatória, mas guarda na memória as cicatrizes. A palmatória era ferramenta de trabalho do Zero-Hora, o PM que por conta própria decretava toque de recolher à meia-noite. A partir de zero-hora, quem ficasse zanzando pela Rodoviária entrava no grupo de risco da palmatória.
Galego apanhou muito. E pelo menos uma vez, mesmo ainda criança, passou a noite na cela do posto policial. Não havia Estatuto da Criança e do Adolescente, não havia discriminação: pequenos e grandes excluídos, todos eram iguais perante a lei da porrada.
Por coincidência ou ironia, a cadeira de engraxate de Galego fica a poucos metros da antiga cela do posto policial, que hoje virou sala de manutenção. Os tempos mudaram, e uma outra geração de meninos perdidos se refugia da vida na mesma Rodoviária.
Alguns trocaram a cola pelo crack; outros perambulam lúcidos, mas perdidos. A nova geração não engraxa mais sapatos, apenas anda de lá para cá, neste vasto mundo condensado em 60 mil metros quadrados. Uânderson, 15 anos, não vai para casa porque apanha do irmão mais velho. Wilian, 14 anos, porque a mãe foi embora para Belém do Pará e em casa ele apanharia do padrasto. Dormem, ambos e mais um monte de crianças, no chamado “vapor”, o disputado ponto em frente ao Banco do Brasil onde sopra uma misteriosa brisa quente, luxo dos luxos para quem passa noites e noites ao relento.
Todos os dias, muitas vezes por dia, Galego vê sua própria história passando diante dos olhos, na forma de Uânderson, Wilian ou qualquer outro menino perdido. Galego também poderia ter se perdido. Galego em algum momento se perdeu, mas encontrou o caminho de volta, mesmo sem sair do lugar.
“Há uma árvore do Bem e do Mal plantada na Rodoviária e em cada lugar do mundo. Deus deu ao homem o livre arbítrio. Todo ser humano tem o direito de errar, e o direito de consertar seus erros”, prega.
Galego consertou os erros e hoje, evangélico, crê não apenas em Deus, mas na Educação como bálsamo para os males do mundo. Há algum tempo, leu no para-choque de um caminhão a frase de Monteiro Lobato que haveria de reforçar sua fé: “Um país se faz com homens e livros”.
Galego, que nem terminou o primeiro grau, lê jornal todos os dias (o mais baratinho, mas lê). Na mochila, carrega sempre a Bíblia e uma obra de ficção (geralmente O Caçador de Pipas, seu livro de cabeceira). O que mais quer na vida é entrar para a política.
Filiado ao PSOL, sonha em eleger-se vereador por Brasilinha e começar a consertar o mundo. Galego sabe da má fama dos políticos, mas não desanima. Crê que também na política existe uma árvore do Bem e do Mal. E que tudo é questão de saber escolher o fruto certo.
Anjos e demônios
Poderia ser um domingo feito qualquer outro: o pequeno circo chinês, o homem da cobra, os pedintes, os namorados que se beijam torcendo para que o ônibus demore, os evangélicos com seus panfletos e cantos anunciando a chegada de Jesus.
Mas não é Jesus quem chega, é o demônio. Não: são dois demônios, de tridente e malha vermelha, e os dois – vejam só! – estão de mãos dadas. E chegam também os anjos, ou melhor: duas anjas – mas como? se os anjos não têm sexo! – com asinhas brancas e vestidinhos curtos, num abraço bem apertado.
E de repente se beijam os dois moços-demônios, e se beijam as duas moças-anjo, e o trio elétrico estacionado na pista em frente à Rodoviária por ocasião da Parada do Orgulho Gay berra a plenos pulmões eletrônicos.
E chegam as moças que por ironia divina nasceram moços, exibindo peitos enormes esculpidos em silicone, uma delas totalmente nua, exceto pelo tapa-sexo que lhe cobre o sexo e por isso não se sabe se é masculino ou feminino o sexo sob o tapa-sexo. E chegam os moços que pela mesma ironia nasceram moças, com os peitos esmagados e quase invisíveis sob as camisas de seus times do coração.
E é tanto homem com homem e tanta mulher com mulher que os frequentadores do dia-dia se entreolham surpresos. Alguns riem de nervoso, outros porque acham graça. E passam os PMs com caras de maus, mas nem eles nem ninguém reprime, nem exorciza.
Apenas o menino descalço que tem as solas dos pés feridas e acaba de ganhar de presente para suas dores um analgésico em gotas comprado por uma alma generosa, manifesta o estranhamento em alto e bom som: “Tio, o cara ali tá só de cueca, e tá beijando outro cara!”
Fora isso, nada. É a lógica da Rodoviária: se ninguém se escandaliza com um menino abandonado que pede um-remédio-pelamor-de-Deus e anda na ponta dos pés por causa das dores, por que se escandalizaria com adultos que se beijam, felizes?
A Rodoviária de A a Z
E passa a moça tatuada de short de cetim empurrando a avó na cadeira de rodas, a avó com a mão direita já quase entrevada de tão sempre estendida à caridade alheia. E passa a menina de duas tranças pegando carona na cadeira de rodas do pai, o pai de braços fortes, veloz, a menina feliz e orgulhosa com as duas tranças ao vento.
E passa a mulher com cinco filhos, os cinco parecendo quíntuplos, de tão parecidos e de idade tão próxima, e a mulher já com o sexto na barriga.
E passa outra mulher, tentando levar para casa o filho chapado, o filho gritando com a voz pastosa de crack palavras incompreensíveis que no entanto a mãe compreende e tanto compreende que tenta tapar-lhe a boca com a mão, e agora é a mulher quem grita “Você vai me matar, você vai matar sua mãe!”
E passam fotógrafos lambe-lambe empurrando estúdios que se movem sobre rolimãs. E passam o pequeno traficante e o grande viciado; o vendedor de relógios “suíços” e o comprador de vale-transporte; o funcionário público sério de paletó e gravata e a moça de sorriso fácil prendendo a respiração para que a minissaia não mostre o quase nada que ainda esconde.
Só Galego é que não passa: fica parado, sentado, olhando as vidas que passam.
O primeiro olhar é sempre para baixo, no rumo dos pés do freguês em potencial. Galego não discrimina, engraxa “de A a Z”, como explica. Na freguesia do “A”, autoridades que nem o senador, ex-governador e reformador da Rodoviária Cristovam Buarque, e o finado mas eterno candidato a presidente da República, o Enéas (“Meu nome é Enéas!”, quem ainda se lembra?). Na freguesia do “Z”, ambulantes, flanelinhas, moradores de rua…
Como assim? Morador de rua com sapato engraxado? Na Rodoviária tem. Diz a lenda que tudo o que há no mundo, na Rodoviária tem. E se não tem na Rodoviária, é porque no mundo não há.
Lugar nenhum no mundo
A moça mais bonita do mundo da Rodoviária deste sábado à noite está sentada a meio-palmo do catador de latinhas. Os dois dividem o banco de cimento diante do box número 11 da plataforma leste. Já é tarde, e a esta hora as pessoas mais vão do que vêm.
O homem que cata latinhas não vê a moça porque dorme com o tronco dobrado sobre os joelhos, a cabeça caída sobre os braços em cruz; já a moça não vê o homem porque o homem foi feito para não ser visto. A moça bonita espera o ônibus. O homem invisível não espera nada. A moça usa perfume bom. O homem cheira a cansaço e desesperança.
A moça veste calça jeans, botas de cano alto e uma blusa de estampa felina que deixa um dos ombros à mostra. O homem usa boné desbotado, calça desbotada, camisa desbotada. O homem é todo ele um desbotamento só.
A moça abre a bolsa, retira um espelho e um lápis preto e reforça a sombra sob os olhos, tentando inutilmente fazer-se ainda mais bela. O homem apenas tosse.
O homem calça sandálias havaianas velhas e protege entre as pernas um saco plástico cheio de latinhas amassadas de cerveja e refrigerante.
Conto por alto e concluo que o homem tem ali um patrimônio de mais ou menos 60 latinhas. E me lembro do que aprendi outro dia com sêo Manoel (o mineiro que chegou a Brasília quando a cidade hoje grande e cinquentenária era só uma pelotinha entre o cerrado e a poeira, o candango que ganhou e perdeu porque na vida ora a gente ganha ora a gente perde): 60 latinhas é igual a 1 quilo de alumínio; 1 quilo de alumínio é igual a 1 real e 60 centavos (pela cotação deste sábado à noite em que o homem invisível dorme sem saber a meio-palmo da moça mais bonita do mundo da Rodoviária).
É tudo o que o homem invisível possui: 1 real e 60 centavos. Assim, com tão pouco, o homem invisível não compra passagem para lugar nenhum no mundo.
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